domingo, 15 de outubro de 2017

Cristãos transitando

Um dos cartões postais do mundo, o Cristo Redentor/Rio de Janeiro foi construído entre 1922-1931 e inaugurado no dia de Nossa Senhora Aparecida, simbolizando a força do Catolicismo no Brasil. Além disso, o país sedia a Basílica de Aparecida do Norte, 2º maior templo Católico no mundo.

Desde os anos 90, os censos brasileiros identificaram um fenômeno chamativo: a mobilidade de pessoas entre diversos credos. Estamos falando, mais especificamente, de um circuito religioso desenvolvido entre os 90% dos brasileiros que afirmam uma religião (67,4% católicos + 11,8% pentecostais + outros menores = 90,1%). E, mesmo entre os que não afirmam qualquer religião, somente 40,3% é totalmente ausente de cultos religiosos, quer dizer, para muitos “sem religião” ela se mostra culturalmente em rituais de batismo, casamentos, funerais, etc. Para complicar o fato, existe ainda uma tal variabilidade individual de credos no Brasil que, não muito raro, uma mesma pessoa adota práticas de diversos segmentos, como por exemplo o batismo católico junto a oferendas para entidades afro ou consultas em centros espíritas. Recentemente, despontaram entre matriz brasileira dos anos 1990 (Católicos, Protestantes históricos, Pentecostais, Espíritas, Afro-brasileiros e Sem religião) os Católicos carismáticos e os Muçulmanos. Grupos minoritários ainda incluem Esotéricos, Budistas, Xinto, etc. Por isso, algumas definições são bem necessárias, mas estão no final desse texto¹.

No Brasil, o Catolicismo ainda é a religião predominante, principalmente entre os mais velhos (56 anos ou mais), seguido pelos Pentecostais, mais presentes entre as mulheres (3 mulheres para cada 2 homens) e menos entre os mais velhos (62% da estimativa nacional). Os Sem religião (9,7%) aparecem principalmente entre os abaixo de 40 anos (120% da estimativa nacional). Os Protestantes históricos e pentecostais aparecem principalmente entre menos instruídos, enquanto os Espíritas (2,9%) e Afro-brasileiros (0,5%) despontam entre os mais instruídos. Entre os mais ricos predominam Espíritas e Sem religião, entre os mais pobres predominam Afro-brasileiros e Católicos. Respeitando sobretudo a distribuição de renda, há um “circuito religioso” que significa a transferência uma ou mais vezes do fiel de um segmento religioso para outro, o que se dá sobretudo na adolescência ou início da vida adulta e em momentos de sofrimento como doenças, luto, desemprego, revelando a não-satisfação do fiel com seu grupo original.

Mais do que isso, principalmente entre os Protestantes, é comum que as pessoas não se identifiquem com um certo segmento religioso ou até desconheçam o segmento a que pertencem, identificando-se mais propriamente com uma denominação. Apesar disso, 26,5% dos adultos afirmam pelo menos uma mudança de segmento religioso e as mudanças de denominações podem ser bem superiores. As maiores taxas de fuga de fiéis estão entre os Protestantes históricos e Pentecostais, as menores entre os Católicos. Os Protestantes evadidos alimentam principalmente os Sem religião. Os Católicos evadidos, numericamente superiores a todos, alimentam sobretudo os Pentecostais, mas também sucedem os Sem religião como maiores receptores de fiéis. Dessa forma, no vai-e-vem das pessoas, há um fluxo principal de Católicos para Pentecostais (alguns retornam ao Catolicismo), de Pentecostais para Sem religião e de Sem religião para Católicos + Protestantes históricos.

Entre as denominações Protestantes esse fluxo é ainda mais intenso, como se os religiosos evadissem do ritualismo Católico (com menores manifestações de religiosidade) para a performance de milagres dos Pentecostais e depois fizessem permutas sucessivas de denominações. Toda essa movimentação é, no entanto, amortizada por 74% dos brasileiros que se mantém talvez toda a vida no mesmo segmento religioso. Mas, nos que se evadem, como é possível que de repente as pessoas deixem sua crença em santos/Maria para entrar num segmento que os rejeita e de fato funciona muito diferente? Como é possível que seguidores dos preceitos do Evangelho, batizados adultos, venham a se declarar sem religião? Tais mudanças podem, claro, ocorrer quando a filiação religiosa é apenas nominal, é apenas ouvir esse ou aquele, ir nesse lugar ou naquele. Mas também pode mostrar uma violenta insatisfação com os modos, preceitos e recursos dentro de um grupo.

Migrações mais drásticas são explicadas pela similaridade dos sistemas de valores de grupos aparentemente muito distintos. Por exemplo, a estrutura Pentecostal é, em muitas igrejas, mais semelhante aos cultos Afro-brasileiros do que ao Protestantismo histórico, aparentado com o Catolicismo. A semelhança entre Pentecostais e Afro-brasileiros se dá pela performance corporal, danças e possessões, além da frequente menção/demonização de um dentro da simbologia do outro². Já entre os Católicos e Protestantes históricos, a hierarquia de religiosos e organização dos cultos é semelhante. Outros que mais recentemente apareceram na última dupla, com significativo crescimento, foram os Muçulmanos, que têm recebido principalmente Católicos, Sem religião e Pentecostais, sobretudo mulheres e negros atraídos pelas história revolucionária dos escravos malês, Malcolm X e Muhammad Ali.

Curiosamente, é mais simples alguém definir o grupo a que pertence do que definir sua própria fé. É mais ou menos como comprar um pacote pronto, da denominação X, ao invés de construir algo com base em experiências, cultura, filosofia, etc. De fato, líderes religiosos trabalham com a “normatização” dos fiéis como se fossem todos iguais, e talvez a fala de Jesus “apascenta minhas ovelhas” nunca tenha se mostrado mais clara. Ovelhas não são tratadas com individualidade, fiéis religiosos também não. Aceitar um “pacote” garante interação social, aprovação da liderança e talvez aplaque os desgostos com o secto ou denominação anterior, o que pode ser valioso num momento de fragilidade e desamparo. Assim, do ponto de vista teológico, mudar de um grupo religioso provavelmente significa um crescimento ou construção das crenças individuais, mesmo que isso signifique passar ao grupo dos Sem religião. Curiosamente, 20% desse grupo frequenta mensalmente algum serviço religioso e mais 31% frequenta anualmente, o que indica pelo menos um status social da religião na vida dessas pessoas. Cerca de 20% dos novos convertidos (em diversos segmentos) são pessoas anteriormente “Sem religião”, o que também não sugere uma aversão à religiosidade nesse grupo.

Mas, então, há oposições dentro dos grupos religiosos quanto a tais mudanças? As oposições são recomendações pelos líderes de que as mobilidades não transfiram o fiel de um grupo a outro (ex. de Católico para Protestante), desvalorizações dos demais grupos e até a proscrição do fiel por parte de amigos e familiares que permaneceram no grupo. Não há base bíblica alguma para esse comportamento, especialmente considerando que o Novo Testamento foi escrito num tempo de difusão do Cristianismo entre povos não judeus. Falava-se da necessidade de introduzir os valores Cristãos, afastar-se da libertinagem, sensualidade, bebedeiras, orgias, farras e idolatria dos cultos pagãos (1ª Pedro 4.3), assim como combater a falta de devoção, riqueza e magias (Apocalipse 2). Tais falhas eram e ainda são encontradas dentro de qualquer denominação Cristã, pois são defeitos muito humanos. Biblicamente falando, as divisões entre Cristãos já existiam e eram combatidas:

Porque, visto que há inveja e divisão entre vocês, não estão sendo carnais e agindo como mundanos? Pois quando alguém diz: "Eu sou de Paulo", e outro: "Eu sou de Apolo", não estão sendo mundanos? Afinal de contas, quem é Apolo? Quem é Paulo? Apenas servos por meio dos quais vocês vieram a crer, conforme o ministério que o Senhor atribuiu a cada um. Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fazia crescer; de modo que nem o que planta nem o que rega são alguma coisa, mas unicamente Deus, que efetua o crescimento. O que planta e o que rega têm um só propósito, e cada um será recompensado de acordo com o seu próprio trabalho. (1ª Coríntios 3.3-8)

Os principais pilares do Cristianismo - amor a Deus e ao próximo - não são combatidos sequer por não Cristãos. Desse modo, o fiel abandonando a denominação X não é um anti-cristão. Ele não encontrou tais poucos valores lá dentro; ao contrário, achou muito mais valores do que esses instituídos por Jesus (valores humanos, mundanos, de homens, como explicou Paulo) ou tem uma simples necessidade pessoal de crescimento que envolve outros grupos, idéias e experiências. Como explicitou a revista Isto É, hoje existem muitos Cristãos que não se filiam a uma denominação. O escritor Tuco Egg explorou esse segmento em seu livro. Ele mostra que, em muitos aspectos, a filiação religiosa até pode atrapalhar a fé de alguém. Ela pode impor-lhe demonstrações públicas e rituais que de fato não são exigidos por Cristo (tido, claro, como base do Cristianismo) e podem enganar o fiel e todos ao seu redor de que ele está próximo de Jesus, participando de alguma Graça que não passa de aprovação coletiva. Uma ovelha tida como boa, por um rebanho problemático.

Acho que vale refletir sobre isso.

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¹Segue uma descrição bem resumida dos segmentos religiosos citados no texto:

Católicos: fundamentam-se no credo de Nicéia romano (325 d.C.), afirmando o Deus criador descrito na Torá judaica, seu filho Jesus, crucificado pelo perdão da Humanidade e o Espírito Santo. Jesus teria ascendido para o lado de Deus em 30 d.C. deixando o Espírito Santo entre os homens e estaria esperando para ressuscitar e julgar os mortos em Seu prometido retorno. Praticam o batismo ao nascimento como “inclusão na fé”. Com base na tradição histórico-religiosa, os católicos exaltam a Maria (mãe de Jesus) como principal intercessora, seguida de santos (pessoas-receptáculo da Graça de Deus) que poderiam modificar os destinos dos homens em resposta à oração ou petição de sacerdotes, tidos eles mesmos como entre homens e santos. Objetos também podem ser mediadores da Graça, por meio de bênçãos ou sua associação com os santos. Os cultos/missas enfatizam rituais como a Ceia e orações coletivas escritas por oficiais da igreja. Os Carismáticos adotam também a incorporação do Espírito Santo, pregação em línguas desconhecidas (glossolalia) e a promoção de milagres. Trabalham com congregações entre 100 a 200 membros, mas podendo chegar a milhares em alguns templos históricos.

Protestantes históricos: fundamentam-se na Reforma Protestante, marcada pelas 95 teses de Martinho Lutero, em 1517. Adotam um Bíblia traduzida do hebraico/grego e não do latim (como a dos Católicos) e sem os livros apócrifos, rejeitam a divindade de quaisquer outras figuras além do Deus criador, Jesus e o Espírito Santo - as demais figuras são tidas como inspiradas pelo Espírito Santo. Há rejeição também a imagens/objetos associados com a Graça divina, de forma que os templos geralmente são pobres em decoração. Dão especial ênfase ao texto bíblico, praticando o batismo de adultos posterior a uma exposição pública da fé em Jesus como salvador. As igrejas protestantes baseiam fortemente sua arrecadação nas doações de Dízimos (literalmente 10% do salário) de fiéis batizados. As igrejas Batista, Luterana, Metodista e Presbiteriana fazem parte desse segmento. Os cultos enfatizam a transposição de textos bíblicos para o mundo moderno, cantos coletivos e orações individuais. trabalham geralmente com congregações entre 100-200 membros, mas podendo chegar a 600 ou mais (Igreja Batista).

Protestantes pentecostais: fundamentam-se nos eventos do dia de Pentecostes (50º após a Páscoa) descritos em Atos 2, quando os apóstolos pregaram em Jerusalém para os gentios, em muitas línguas, com labaredas aparecendo sobre suas cabeças. São historicamente marcados pelos êxtases e curas milagrosas de John Wesley em Londres, em 1738, e William J. Seymour em Los Angeles, em 1906. Praticam o batismo de adultos posterior a uma exposição pública da fé em Jesus como salvador, mas adotam por vezes um “2º batismo” com a incorporação do Espírito Santo no fiel, a promoção de êxtases e/ou milagres (dons espirituais). Além de basear sua arrecadação nas doações de Dízimos, algumas igrejas pregam doações como demonstrações de fé. As igrejas Assembléia de Deus, Batista da Lagoinha, Congregação Cristã, Deus é Amor, Evangelho Quadrangular e Universal do Reino de Deus fazem parte desse segmento. Os cultos enfatizam cantos/danças coletivos, orações individuais em voz alta, testemunhos de milagres e a invocação do Espírito Santo. Junto com os Protestantes históricos, formam o segmento Evangélico. Trabalham com congregações muito pequenas (30-40 membros, ex. Igreja Pentecostal Deus é Amor e Assembléia de Deus) mas também médias (ex. 260 membros, Igreja Universal do Reino de Deus).

Espíritas: fundamentam-se no Livro dos Espíritos, de Hippolyte L. D. Rivail (Allan Kardec), em 1857, que reuniu suas experiências pessoais com os trabalhos filosóficos de Mesmer e Swedenborg. Acreditam em um mundo físico e um espiritual entrelaçados, de forma que os espíritos dos mortos poderiam, num contínuo, involuir para uma espécie de inferno (onde mendigam restos de matéria e são escravizados por demônios) ou evoluir para uma espécie de paraíso (onde habitam e interagem com santos, Maria, Jesus, etc). Jesus é um exemplo moral máximo e Lúcifer/Satanás um espírito desencaminhado. Os mais “humanos” afetariam a ocorrência de doenças e as decisões dos homens. Em sua evolução, os espíritos re-nasceriam como humanos para tempos de aprendizado. No Brasil, esse segmento compreende grupos afro (onde os santos e “perdidos” são Pretos velhos, Exus, Índios, etc) e também os grupos kardecistas (onde os santos e “perdidos” são pessoas mortas). Aceitam a ligação de espíritos com locais e objetos, valorizam obras de caridade e filantropia, praticam palestras e cursos. Os cultos enfatizam orações coletivas e a invocação de espíritos por médiuns para consulta e curas, sendo quase sempre feitos à noite em congregações pequenas (até 30 membros).

Afro-brasileiros: fundamentam-se na tradição oral e cultural dos escravos Yoruba, Fon e Bantu. Aqui se reúnem o Candomblé e a Umbanda. O Candomblé é um culto politeísta, cujo deus criador é Oludumaré, servido por Orixás associados às tempestades, matas, rios, disputas, etc. Os Orixás não são humanos, mas um fiel pode se associar a um Orixá (que se torna seu protetor), exigindo dele vestimentas e comportamentos específicos, além de oferendas. Os cultos são noturnos, marcados por danças e os Orixás incorporam nalguns servos para consultas, curas ou até para enfeitiçar outras pessoas. Os líderes são sagrados e passam tempos reclusos, dedicados a seu Orixá. A Umbanda mistura em proporções variadas elementos do Candomblé, Catolicismo e Espiritismo, se associando à prática de magia. O deus africano é Oxalá na forma de Jesus, assim como os santos católicos são embutidos dos poderes de entidades do Candombé e recebem oferendas. Fazem largo uso de velas e estátuas, como no Catolicismo, os cultos são noturnos, misturam danças e incorporações, mas as entidades são mortos do séc. 19: pretos e pretas velhos, crianças, índios, etc que dão consultas, promovem curas ou prejudicam inimigos. Embora vários sejam “médiuns”, apenas os sacerdotes estão vinculados formalmente a uma entidade.

Muçulmanos: oficialmente, o nome significa seguidores do Islã (submissos a Deus). Fundamentam-se na revelação de Deus (Allah) para Muhammad/Maomé em 607 d.C. O Profeta foi levado à presença de Allah e passou a ditar textos inspirados que foram reunidos no Al-Quran, Corão ou Alcorão (recitação). Eventos de sua vida foram registrados no Hadith. No Alcorão, Allah instrui os homens sobre assuntos variados, expõe uma continuidade entre os judeus/israelitas do Velho Testamento, os Cristãos e os Muçulmanos e alerta continuamente sobre o Dia do Julgamento. Embora os muçulmanos não usem a Torá judaica ou o Novo Testamento cristão, o Alcorão assume conhecimento de ambos e cita eventos nas Escrituras hebraica e cristã que são considerados apócrifos. Rejeitam qualquer culto que não a Allah, mesmo a reprodução artística de animais e plantas. Como os judeus, a iniciação se dá 8 dias após o nascimento com a Circuncisão. Têm o árabe como língua sagrada, enfatizam os preceitos do Alcorão (de forma a produzir pureza) e do Hadith, a prática individual de oração, jejum e caridade. Têm preceitos rígidos quanto ao público (que pode ser exposto) e o privado (dos membros de uma família). Os cultos são orações coletivas e leituras/recitação de partes do Alcorão.

²Apresento abaixo um vídeo comparativo de um culto Pentecostal e outro de Umbanda, estruturalmente bem parecidos. Há variedades grandes nos cultos de um segmento e de outro, sendo essa comparação feita, aqui, apenas para mostrar que as diferenças não são tão grandes quanto suas bases de fé.

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Referências que significaram alguma coisa

Almeida R, Montero P, Trânsito religioso no Brasil, São Paulo em Perspectiva 15(3):92-101, 2001.
Ribeiro, L. M. P. (2012). A implantação e o crescimento do islã no Brasil. Estudos de Religião, 26(43), 106-135.
Azusa Street Revival - wikipedia
Candomblé - wikipedia
Cardoso R, O Novo Retrato da Fé no Brasil, revista Isto É, ed. 2180, 24/out/2011.
Egg T, Igreja Entre Aspas, ed. Grafar, 2011.
Hadith - wikipedia
Islam - wikipedia
John Wesley - wikipedia
Pentecostalismo (site brasileiro) - wikipedia
Pentecostalism - wikipedia
Spiritism - wikipedia

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