terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Santuário para todos



material publicado no New York Times, em 27/dez/2016

Javier Flores Garcia dorme todas as noite num berço em uma sala de aula da escola dominical, que os membros da igreja equiparam com um microondas, um refrigerador compacto e uma televisão. O Sr. Flores, que é jardineiro, anseia pelo ar livre, mas não se atreve a pôr os pés lá fora. Ele deveria se apresentar às autoridades de imigração no mês passado para ser deportado para sua pátria, o México. Mas um dia antes de sua data de apresentação, ele se refugiou na igreja.

Sua família (na foto) é a razão pela qual ele está lutando para permanecer, e quando o visitamos na igreja recentemente, seu filho Javier Jr., de 5 anos, sentou-se no seu colo. O menino muitas vezes se recusa a deixar o lado de seu pai, e acabou ficando por dias com ele na igreja. No dia de Natal, o Sr. Flores estava lá havia 6 semanas.

A Igreja Metodista Unida de Arch Street é um dos 450 templos nos Estados Unidos que se ofereceram para abrigar ou dar assistência aos imigrantes sem documentos, de acordo com os líderes do Movimento Santuário. Poucas congregações têm o espaço e a estrutura para abrigar imigrantes indefinidamente, de modo que outras congregações se ofereceram para contribuir com dinheiro, assistência jurídica, alimentação, assistência às crianças ou transporte. As congregações que se juntaram a esta rede mais que dobraram desde a eleição de Donald J. Trump - uma refutação rápida à promessa do Sr. Trump de deportar 2 a 3 milhões a milhões de imigrantes não autorizados que ele disse que foram condenados por crimes.

Proteger os imigrantes está se configurando como uma prioridade da esquerda religiosa, uma coleção amorfa de pessoas e grupos que refletem muitas fés e etnias. Esse grupo foi posto em ação pela vitória do Sr. Trump e a nomeação de um procurador-geral que apoia a repressão aos imigrantes.

"Jesus disse que devemos dar hospitalidade ao estranho", disse o Rev. Robin Hynicka, pastor da igreja de Arch Street, citando a Bíblia.

Quando o Filho do homem vier em sua glória, com todos os anjos, assentar-se-á em seu trono na glória celestial … Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham, benditos de meu Pai … Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram’. Então os justos lhe responderão: ‘Senhor, quando te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos como estrangeiro e te acolhemos, ou necessitado de roupas e te vestimos? Quando te vimos enfermo ou preso e fomos te visitar?’ O Rei responderá: ‘Digo-lhes a verdade: o que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram’. (Mateus 25.31-40)

"Isso é exatamente o que nós vimos Javier pedir, para fornecermos abrigo. E, claro, dissemos que sim", acrescentou. O Rev. Hynicka falou conosco em seu escritório movimentado na parte de cima igreja, que tem 375 membros. O aquecimento funcionava melhor no salão de reuniões, onde até 30 pessoas sem abrigo se refugiavam nas noites de inverno. “Esta igreja está acostumada a mobilizar-se por causas sociais, desde o casamento gay até lutas contra o jogo de cassino e por um aumento do salário mínimo. Há 5 anos, a igreja se juntou ao Movimento Santuário da Filadélfia”. O Sr. Flores foi a primeira pessoa que a igreja recebeu.

Nesta noite, seus filhos animadamente trouxeram para o Sr. Flores pedaços de doces com que os voluntários estavam enchendo piñatas mexicanas para uma festa mais tarde. O Sr. Flores e sua parceira Alma López têm dois filhos: Javier Jr. e Yael, de 2 anos. Ele também assumiu os cuidados da filha de Sra. López, Adamaris, de 12 anos, desde que ela foi abandonada pelo pai biológico. Todos nasceram nos Estados Unidos. A casa da família fica a dois trajetos de ônibus da igreja. Alma López, chupando um pirulito, disse que o retorno da família ao México não é uma solução: "Queremos um futuro melhor para nossos filhos. A situação no México é muito ruim. Não há trabalho, não há boa escola. Aqui, temos um futuro."

As autoridades federais de imigração dizem que Flores tem um longo histórico de violações: Ele foi preso 9 vezes entre 1997 e 2002 tentando atravessar a fronteira. Ele entrou novamente e foi deportado por um juiz em 2007. Ele reentrou duas vezes em 2014 e cumpriu sentenças de prisão por reentrada ilegal. No ano passado, seus filhos o viram sendo levado pelas autoridades, e isso custou caro. Enquanto o Sr. Flores estava detido este ano, Adamaris tentou suicídio em abril, bebendo uma garrafa de álcool. Ela ficou internada por 9 dias. Funcionários de imigração libertaram Flores durante 90 dias para preparar sua família para a deportação. O Movimento Santuário era sua última esperança. "Meu único crime é ter voltado", disse Flores, que usa uma tornozeleira colocada pelo governo.

O Movimento Santuário nos Estados Unidos não é novo. As igrejas ofereceram abrigo aos soldados que se recusaram a servir na Guerra do Vietnã. E na década de 1980, as congregações abriram suas portas para os latinos que fugiam das guerras em El Salvador, Guatemala e Honduras. "O movimento foi revivido em 2006 e cresceu durante os dois mandatos do presidente Obama", disse a Rev. Alexia Salvatierra, pastora da Igreja Evangélica Luterana na América. Pelo menos 2,5 milhões de pessoas foram deportadas durante o governo Obama, que ganhou o apelido de “o grande deportador”.

Uma mudança significativa da década de 1980, disse Salvatierra, é que agora, milhares de igrejas latinas e seus clérigos também estão envolvidos na proteção dos imigrantes. Freqüentemente seus próprios membros se envolvem, muitas vezes em silêncio. Nos anos 80, a maioria das igrejas protestantes brancas liderou o caminho.

"Estamos em um universo diferente agora. Não precisamos dos brancos para nos resgatar, muito obrigado. Precisamos estar em parceria", disse ela em uma entrevista, antes de sair para treinar trabalhadores do Santuário em uma igreja multiétnica no centro de Los Angeles. Ela esperava 25 pessoas, mas 150 se inscreveram.

Alguns vêem o Santuário como um movimento equivocado, ou ingênuo. Jessica Vaughan, diretora de estudos de política no Centro de Estudos de Imigração, que apoia controles mais rígidos sobre a imigração, disse que ela entendeu que as igrejas tinham simpatia por pessoas deportadas. "Mas eu desejo que eles também tenham simpatia por outros paroquianos que são afetados negativamente pela imigração ilegal" por causa de empregos, impostos mais altos ou crime.

Igrejas, escolas e hospitais são considerados "locais sensíveis", de acordo com a Imigração e Alfândega. Os oficiais de imigração devem evitar esses locais, a menos que tenham aprovação antecipada de um supervisor ou frente a "circunstâncias exigentes" que exijam ação imediata, disse Jennifer Elzea, porta-voz da agência.

Líderes religiosos estão se preparando para a possibilidade de que isso possa mudar sob o Presidente Trump. O Seminário de Auburn, em Nova York, que treina líderes religiosos de esquerda, convocou uma "Cúpula de Fé Duradoura" neste mês e convidou a Rev. Alison Harrington de Tucson para dar oficinas sobre o Santuário.

"Não podemos assumir que os templos permanecerão locais seguros", disse Harrington, pastor sênior da Igreja Presbiteriana Southside, há muito tempo um centro de trabalho para o Santuário. Trabalhadores do Santuário nos anos 80 organizaram uma espécie de "estrada de ferro subterrânea" para mover imigrantes de regiões perigosas para lugares mais seguros, e isso pode ter que ser reativado, ela disse a sua oficina.

Ao considerar se oferecer como Santuário, as congregações procuram imigrantes com casos viáveis e histórias simpáticas. O Sr. Flores foi vítima de um ataque de faca fora da Filadélfia em 2004 e deu o testemunho policial que resultou na prisão dos atacantes. Ele pediu um Visto U, dado a vítimas de crimes, disse seu advogado.

Em Denver, este mês, a Mountain View Friends Meeting, uma igreja Quacre, recebeu uma mulher do Peru que trabalhou por anos em uma casa de repouso usando papéis falsos, foi presa, pagou 12 mil dólares em fianças e serviu 4 anos em liberdade condicional, disse Jennifer Piper, organizadora inter-religiosa do American Friends Service Committee e coordenadora da Coalisão Santuário Metro Denver. A mulher peruana tem dois filhos com idades de 8 e 1 anos, ambos cidadãos americanos. Há cerca de 11 pessoas em igrejas Santuário em Nova York agora, disse a Rev. Donna Schaper, ministro sênior da Igreja Judson Memorial, que está abrigando um deles. Esses imigrantes não cometeram crimes violentos, disse ela, e muitos, como a mulher em Denver, pagaram suas penas e agora enfrentam um risco duplo. A Sra. Schaper disse que estes não são os "estupradores" mexicanos que o Sr. Trump disse que deportaria.

"Estamos falando principalmente de crimes administrativos: falsificação de cartões de crédito e clonagem de identidades. Muitas dessas pessoas são de classe média e bem educadas", disse ela, “e não são apenas latinos, mas também chineses, russos, paquistaneses e muitos outros”.

Para algumas igrejas, seus próprios paroquianos são imigrantes em risco. Robert W. McElroy, bispo católico de San Diego, disse recentemente em uma conferência de imigração: "É inconcebível que nos mantenhamos parados enquanto mais de 10% de nosso rebanho é deportado". A Diocese Episcopal de Los Angeles recentemente declarou-se uma "diocese Santuário" e assumiu uma posição de "santa resistência" aos planos de imigração de Trump. A Conferência da Igreja Metodista Unida da Califórnia também proclamou apoio aos esforços do Movimento Santuário.

Quando os rabinos se reunirem em fevereiro, o grupo judaico T'ruah anunciou: “O chamado rabínico para os direitos humanos oferecerá treinamento sobre como transformar as sinagogas em congregações Santuário”. Antes da festa da piñata na igreja de Arch Street, houve um ritual chamado Las Posadas, uma reconstituição da busca de abrigo por Maria e José. Os visitantes recolhidos pelo Santuário cantaram versos implorando para serem acolhidos e os membros da igreja responderam de dentro. O Sr. Flores e sua família estavam dentro, é claro.

"Não há melhor trabalho para a igreja fazer", disse o Rev. Hynicka, com seu braço ao redor deles, "do que fornecer o que sabemos que Deus nos dá, nosso sincero compromisso com a família, não nos importando se essa família vem do México ou de Filadélfia, ou de qualquer lugar''.

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Site do Movimento Santuário

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