domingo, 8 de janeiro de 2017

Falaram de Deus


Escrevo este texto para fazer um comentário desinteressado (e talvez inútil) ao texto acima. Por isso, se você chegou aqui sem ler ele, peço que leia para saber do que eu estou falando - ou desista enquanto é tempo e poupe alguns minutos seus.

Obviamente, não há como falar sobre as intenções dos prefeitos ao usarem do nome de Deus para assumirem seus cargos. Para um Cristão, seria ofender ao Altíssimo fazer isso de forma leviana ou mentirosa, para ganhar algum prestígio popular ou esquivar-se das responsabilidades por sua própria administração. Para um não-cristão, entretanto, pode ser só um jeito fácil de conseguir benefícios. Vai da fé de cada um e não cabe a mim pesar a fé dos outros. Mas cabe falar sobre mensagens invisíveis, embutidas feito pesticidas e conservantes na matéria que o jornal El País apresenta.

RELIGIOSOS FALAM DE RELIGIÃO

Primeiro, vamos à chamada quanto ao discurso de Marcelo Crivella. Trata-se de um político que, bem ou mal, nunca desvencilhou sua atuação e imagem pública do cargo de BISPO que tem. Outros (da chamada Bancada Evangélica) também fazem isso. Um bispo é, biblicamente falando, um sacerdote promovido a organizador ou administrador de outros sacerdotes. Foi essa a função de Pedro em Roma.

Esta é uma palavra fiel: se alguém deseja o episcopado, excelente obra deseja. … Porque, se alguém não sabe governar a sua própria casa, terá cuidado da igreja de Deus? (1ª Timóteo 3.1-5)

Dessa forma, seria realmente estranho se Crivella não ligasse seu mandato à religião. Seria como desvincular Sílvio Santos da televisão. Não podemos garantir, claro, que Crivella será um bom prefeito, mas inevitavelmente sua atuação como bispo repercutirá na prefeitura e vice-versa. Quanto ao Pai Nosso, não é uma oração católica: ela é ensinada pelo próprio Jesus em Mateus 6.9-13 como uma orientação sobre a forma como os homens devem falar a Deus, sendo parte integrante do que Mateus denominou “Sermão da Montanha”. Crivella falava aos seus próprios seguidores Cristãos, fossem católicos, ortodoxos ou protestantes.

AS DIREÇÕES DOS RELIGIOSOS

No parágrafo seguinte, o artigo chama a atenção para o fato de que a ex-prefeita Ilma Grisoste decretou a entrega das chaves da cidade a Deus. Trata-se da única pessoa cuja formação foi citada no artigo, e assim sabemos que ela é formada em Pedagogia e doutora em Psicopedagogia. Nem a formação de Crivella (que pelo menos bacharel em Teologia deve ser) foi citada. Mas porque essa atenção (do jornalista) à formação de Grisoste? O Datafolha explica: quase 70% das pessoas com até o ensino fundamental acreditam que a fé torna as pessoas melhores, contra menos de 30% nas pessoas com ensino superior. Essa informação aparece camuflada na página 7 da pesquisa sobre “posição em relação a alguns temas”, de 2012.

As estatísticas situam a ex-prefeita Grisoste dentro de uma minoria que tem mais ferramentas para lidar com o próprio destino do que grande parte da população brasileira, mas ainda assim associa com o divino as suas diretrizes pessoais. Exatamente de quais diretrizes estamos falando? Outra pesquisa de “perfil e opinião”, de 2016, focando apenas o público que se diz religioso, aponta que a religião principalmente limita o consumo de bebidas (segundo 65% dos protestantes e 20% dos católicos) e o acesso a conteúdos impróprios da mídia (50% dos protestantes e 16% dos católicos). Há pouca ou nenhuma relevância da religião sobre a preferência por partidos e decisões políticas. Cerca de 40% dos brasileiros religiosos (independente da religião) não desejam influências religiosas na política e duelam com outros 35% que desejam essa influência, mas 80% não leva em conta a opinião de líderes religiosos sobre política. Mas o que seriam essas influências ou valores? O Datafolha mostra que são a fé em Deus (apontado por 17% dos Cristãos), ensinamentos bíblicos (12% dos protestantes e 6% dos católicos) e solidariedade (11% dos kardecistas ou umbandas; 3% dos Cristãos). Aparentemente, o mandamento de amor a Deus tem sido cumprido pelos políticos Cristãos (como Grisoste), mas não tanto o mandamento de amor ao próximo.

Quanto à renda familiar, que também influencia muito o poder de ação das pessoas, também há grandes diferenças: 60% das pessoas com renda abaixo de R$1200 acreditam que a fé torna as pessoas melhores, contra 30% nas pessoas com renda acima de R$3100. Nenhuma surpresa, pois Deus nunca cobrou para se relacionar! A situação até melhorou bastante desde os tempos bíblicos: a Galiléia e Judéia de Jesus eram províncias imundas aos olhos dos romanos, então devotos do culto (racional e politicamente correto) aos imperadores. O jornalista então levanta uma bandeira doída quanto a isso: “Esse Deus acaba sendo um perigo porque anula os próprios esforços das pessoas para avançar na vida, enquanto elimina sua capacidade de protestar e se rebelar contra o poder injusto. Esse Deus empurra os pobres à resignação.” 

Trata-se de uma conclusão enviesada (não científica) se for baseada somente em estatísticas, pois elas não definem causa e efeito. Sim, há mais referências à fé como transformadora nas populações mais pobres e menos instruídas; isso pode indicar tanto que os menos favorecidos buscam a Deus como indicar que os que buscam a Deus são menos favorecidos. Biblicamente falando, eu até escolheria a 1ª opção, pensando que todos os cataclismas, invasões e cativeiros dos judeus no Velho Testamento (ex. destruição de Sodoma, cativeiro no Egito, invasão dos Caldeus, etc) ocorreram porque o povo havia se afastado de Deus. Então talvez Ele faça uso deliberado do desfavorecimento ou empobrecimento como forma de atrair as pessoas para Si. E isso não é resignação!

Meu filho, não desprezes a correção do Senhor, nem te espantes de que ele te repreenda [com pobreza e desfavorecimento educacional?], porque o Senhor castiga aquele a quem ama, e pune o filho a quem muito estima. (Provérbios 3.11,12)

Ouçam, meus amados irmãos: não escolheu Deus os que são pobres aos olhos do mundo para serem ricos em fé e herdarem o Reino que ele prometeu aos que o amam? (Tiago 2.5)

Repreendo e disciplino [com pobreza e desfavorecimento educacional?] aqueles que eu amo. Por isso, seja diligente e arrependa-se [instrua-se e trabalhe?]. Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo. (Apocalipse 3.19,20)

QUEM É LAICO NESSA ESTÓRIA

O artigo de El Pais também faz uma confusão perniciosa entre laicismo e não-religiosidade. No dicionário, laico significa “aquele que não pertence ao clero nem a uma ordem religiosa”, ou seja faz referência direta a uma ação política da Igreja no sentido de obrigar ou suprimir comportamentos não pelo amor ao próximo, como Jesus ensinou, mas pela imposição/constrangimento legal ou uso de violência. Nesse sentido, Estados laicos são Estados que não seguem imposições políticas da Igreja: podem ser ateus, agnósticos ou até Cristãos. Estados laicos não são dirigidos por pessoas sem religião, mas por pessoas fora da hierarquia (cesaropapista) da Igreja. Isso, na prática, significa que um Estado laico é administrado por convicções religiosas ou não-religiosas individuais das pessoas, ao invés da determinação de algum líder religioso. De fato, se observarmos que todas as religiões possuem um elemento de organização das atividades das pessoas, além de características culturais fortes, seria extremamente difícil ou até impossível haver um Estado não-religioso.

Quanto a ver o sucesso ou o fracasso como resultado dos seus esforços, a Bíblia é bastante avessa à resignação: “Como é feliz quem teme ao Senhor, quem anda em seus caminhos! Você comerá do fruto do seu trabalho, e será feliz e próspero” (Salmos 128.1,2); “Todo trabalho árduo traz proveito, mas o só falar leva à pobreza” (Provérbios 14.23); “Descobri também que poder comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho, é um presente de Deus” (Eclesiastes 3.13); “A religião que Deus, o nosso Pai aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo” (Tiago 1.27); “Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se’, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso?” (Tiago 2.15,16). Propositalmente, peguei sentenças do Velho e do Novo Testamentos, para ilustrar que o pregado pela Bíblia nunca foi uma resignação impotente, mas sim um atrelar entre o trabalho e os mandamentos de amor para com Deus e os homens, como no ditado espanhol: “A Deus rogando, mas com martelo batendo”. Necessariamente as duas coisas. No momento em que as classes mais favorecidas da população pouco atribuem a Deus os seus sucessos, fecha-se o que Jesus falou sobre ser mais fácil passar um camelo pelo buraco da agulha do que um rico entrar no Reino de Deus (Marcos 10.25).

CONCLUINDO

Seria surpreendente se, de fato, tivéssemos uma geração de novos prefeitos seguindo diretrizes Cristãs em seus mandatos. E mesmo os não cristãos hão de concordar que as diretrizes Cristãs são muito melhores do que aquilo que fazem delas. Historicamente, o Cristianismo está cheio de maus exemplos. Num extremo usam o Jesus que aboliu julgamentos como pretexto para condenar pessoas; noutro, usam os dízimos destinados à eqüidade social para produzir sacerdotes milionários. E agora - esperemos que não - pode ser que usem Deus como desculpa para administrações pretenciosamente mal feitas, desinteressadas pelas mesmas pessoas que Tiago tanto valorizava. Mudanças são necessárias, tanto na Política quanto nas Igrejas e, se na primeira trata-se de dar passos à frente, nas últimas trata-se, incrivelmente, de fazer o Cristianismo mais parecido com aquele que o fundou, há 20 séculos.

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CONTARAM NO DATAFOLHA



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