sábado, 28 de maio de 2016

Século 1 - 1ª parte


Incêndio de Roma

O 1º século do Cristianismo foi uma época bastante turbulenta, estando entre os grandes eventos na época a destruição de Roma num incêndio, a destruição de Jerusalém pela legiões romanas e uma turbulência política sem precedentes no Império. Para quem se alarma com a situação política no Brasil, Roma chegou a coroar 4 imperadores em um mesmo ano.

ROMA

Quando Octavianus foi coroado Augusto (Caesar Divi Filius Augustus, 27 a.C. – 14 d.C.), sucedendo seu pai Júlio César, ele iniciou uma tradição de honrar aos imperadores romanos como deuses. Roma era politeísta, misturando versões dos deuses etruscos e gregos, de forma que Augusto viu nessa medida uma forma de atrelar o poder romano às imensas terras conquistadas pelo Império, que iam desde a Bretanha até o norte da África, Grécia e Síria. Os povos conquistados geralmente associavam heróis de seu passado a deuses e espíritos protetores, de forma que não é surpreendente Roma ter absorvido algo dessa tradição. Porém, tratava-se também de uma manobra política, uma vez que tais heróis e deuses protetores serviam freqüentemente de inspiração a movimentos libertários. Desde o reinado de Augusto, as estátuas do imperadores passaram a ser postas em templos e fomentava-se a sua adoração, como forma de reverência a Roma.

Quando Roma desmantelou-se no Ocidente (~ 490 d.C.), a igreja romana assumiu essa posição de ser reverenciada e mesmo o idioma romano - o latim - resistiu por muitos séculos como uma espécie de língua sagrada.

Para os povos politeístas da Europa e norte da África, a adoração aos imperadores romanos não foi problemática. Entretanto, os povos monoteístas (como os Judeus) sentiram-se tremendamente ofendidos e as medidas de Augusto só pioraram as tensões. Os reis locais instituídos por Roma como Herodes I (37 - 4 a.C.), Herodes Arquelau (4 a.C. - 6 d.C.), Herodes Antipas (4 a.C. - 39 d.C, assumiu a Judéia após o exílio de Arquelau) e Herodes Agrippa (41 - 49 d.C.) tiveram de manter um equilíbrio complicado entre as revoltas internas e o que era oferecido a Roma como garantia de sua lealdade. Por isso é compreensível que Antipas e Pôncio Pilatos, autoridades locais, tivessem muito tato ao lidar com líderes populares como profetas (ex. João batista, Jesus, etc) e os membros do Sinédrio. Várias vezes os conflitos saíram de controle e legiões foram mandadas para “manter a ordem” na Galiléia, Judéia e Síria, executando milhares de judeus, incluindo os sacerdotes do Templo. Outras vezes, os reis locais foram substituídos por prefeitos ou generais romanos.

Por essa situação, Roma permaneceu muito tempo desinteressada em movimentos religiosos minoritários como o Cristianismo. Os Judeus eram um problema muito maior, sobretudo considerando que a Síria, Judeía e Galiléia eram postos comerciais importantes e territórios estratégicos em fronteira com os Persas, no Oriente.

Para os Judeus, o Cristianismo logo representou uma ameaça, visto que Jesus e seus discípulos falavam diretamente contra a pureza legalista dos Fariseus (observantes estritos da Lei escrita e da tradição) e a pureza hereditária dos Saduceus (descendentes das famílias nobres da Judéia). Juntos, os Fariseus e Saduceus negociavam a todo momento com Roma o poder político na Judéia, tendo a responsabilidade por muitos levantes populares. João (e talvez outros profetas antes dele) já havia questionado o sistema dos Fariseus ao afirmar que era suficiente arrepender-se dos pecados e abster-se dos prazeres carnais, mas ainda estava ligado ao sistema judaico no sentido em que a atenção de Deus precisava ser merecida e alcançada. Jesus quebrava essa noção ao dizer que Deus já amava os homens, mesmo os pecadores. Seus seguidores iam ainda mais longe ao dizer que bastava crer em Jesus para ser salvo. Pior que isso, os seguidores de Jesus pregavam uma resistência pacífica, o que enfraquecia os Saduceus e Fariseus perante Roma.

Uma evidência de que Roma importava-se muito pouco com o Cristianismo está no culto que se desenvolveu ao redor de Apolônio de Tyana (3 a.C. - 97 d.C.). Esse filósofo era um seguidor de Pitágoras que andou pela Capadócia, na Turquia, aparentemente ensinando que Deus era uma entidade desvinculada do mundo material e responsável pela inteligência humana. Seus ensinamentos funcionaram como norteamento moral e terapêutico, sendo propagados pela Grécia, norte da África e até em Roma. Ao invés de mover uma perseguição a Apolônio, Roma chegou mesmo a cultuá-lo como divindade, sendo sua suposta biografia encomendada pela imperatriz Julia Domna no final do 2º século d.C. João batista, Jesus e os apóstolos se encaixavam nesse modelo de pregadores, ao qual Roma estava bastante acostumada.

AQUECENDO OS CONFLITOS

Na Judéia, as relações entre Cristãos e Judeus se agravaram com o apedrejamento de Estevão (~ 31 d.C.), após ser interrogado pelo Sinédrio. Saulo-Paulo estava supostamente presente nesse julgamento, embora fosse um membro excepcionalmente novo do Sinédrio, estrangeiro e educado pelo conciliador mestre Gamaliel. Em nome do Sinédrio (e não de Roma, como Lucas faz parecer às vezes no livro de Atos), Paulo chefia a perseguição aos Cristãos na Judéia, até sua própria conversão, poucos anos depois.

A Roma capital do mundo ocidental era uma grande cidade formada por 14 distritos, habitada por romanos, gregos, sírios, judeus, cartagineses, espanhóis, gauleses e bretões. Grande parte deles provinha de áreas rurais e moravam nos distritos mais pobres ou nem tinham casa. Como os escravos eram a principal mão de obra (professores, médicos, cirurgiões e arquitetos), os homens livres geralmente eram comerciantes (padeiros, peixeiros, carpinteiros, cabeleireiros, etc), podendo pagar muito pouco por uma habitação. Assim, a cidade era formada por cerca de 50 mil edifícios de 5 a 7 andares, construídos da forma mais precária possível. Os andares superiores não tinham janelas nem banheiros e muitas vezes desabavam com o peso dos seus habitantes. As ruas eram vielas estreitas e sem iluminação, onde eram jogados os dejetos dos moradores. Nas partes mais altas da cidade, por outro lado, ficavam prédios públicos e as casas de madeira e mármore das famílias ricas, com suas áreas abertas e jardins internos. Os distritos pobres eram o cenário perfeito para um grande incêndio, como os que freqüentemente devastam as favelas brasileiras.

Em julho de 64 d.C., no meio de um verão quente e seco, numa noite com muito vento, um incêndio começou entre as lojas ao redor do Circus Maximus, um estádio de corrida de carruagens. O fogo se alastrou por 6 dias antes de ser controlado; em seguida, reacendeu e queimou a cidade por mais três. Quando a fumaça se dissipou, 10 dos 14 distritos estavam em ruínas. O templo de Júpiter Stator - de 800 anos - e o Atrium Vestae, templo principal das virgens vestais, tinham desaparecido. O calor havia atingido temperaturas tais que pregos das construções e moedas derreteram. Muitas pessoas se abrigaram em prédios públicos e não conseguiram escapar. O imperador Nero, que não estava na cidade, mobilizou grandes esforços para evacuar Roma e conter o fogo, que destruiu boa parte do seu palácio principal. Nos anos seguintes, Nero atribuiu o incêndio à atividade criminosa dos Cristãos, passando a prendê-los, dar como como caça aos leões no Colliseum e até queimá-los vivos, usando as carcaças em chamas para iluminar suas festas noturnas.

O diretor polonês Henryk Sienkiewicz (Nobel de literatura em literatura em 1905) assombrou o mundo com seu livro “Quo Vadis”, onde ele misturou os relatos de historiadores antigos como Tacitus, Suetonius e Dion Cassius para criar um Nero infantil, cruel e que mandou incendiar sua cidade como parte de uma “peça teatral” escrita por ele mesmo. O Nero verdadeiro provavelmente estava longe disso: houveram esforços reais para salvar a população, a reconstrução da cidade foi um projeto urbano claramente voltado a evitar incêndios e o próprio palácio real foi reconstruído quase idêntico ao original e usando partes dele. Mas os historiadores registraram que não faltaram acusações a ele como mandante do incêndio. Hoje sabemos que o fogo em Roma era provável, além de se espalhar de forma natural e previsível. Mas a população queria um culpado.

A perseguição de Nero aos Cristãos por um lado apresentava esse “culpado” e por outro conseguia alguma empatia dos Judeus, com quem Roma travava um embate crítico na Judéia. Além disso, tanto Judeus como Cristãos espalhavam pregações apocalípticas de que a dominação de Roma seria extinta com fogo. O livro de Apocalipse, por exemplo, traz visões do apóstolo João na ilha de Patmos (Grécia). Ele teria sua forma escrita só no final do séc. 1, mas já devia circular como pregações orais. Nele lemos

Então o anjo me disse: "Por que você está admirado? Eu lhe explicarei o mistério dessa mulher e da besta sobre a qual ela está montada, que tem sete cabeças e dez chifres. A besta que você viu, era e já não é. Ela está para subir do abismo e caminha para a perdição. Os habitantes da terra, cujos nomes não foram escritos no livro da vida desde a criação do mundo, ficarão admirados quando virem a besta, porque ela era, agora não é, e entretanto virá. Aqui se requer mente sábia. As sete cabeças são sete colinas sobre as quais está sentada a mulher. São também sete reis. Cinco já caíram, um ainda existe, e o outro ainda não surgiu; mas, quando surgir, deverá permanecer durante pouco tempo. (Apocalipse 17.7-10)

Curiosamente, Roma era conhecida em todo mundo antigo como a “cidade das 7 colinas”. É bastante provável que Nero, influenciado por informantes, tenha se baseado das pregações cristãs para apontar os culpados pelo grande incêndio.

JUDÉIA EM GUERRA

A Judéia do 1º século não era muito diferente de Roma: ali viviam juntos Judeus (com suas muitas castas), Gregos e Romanos. O trabalho catequético de Jesus e os 1os apóstolos já inspirara conflitos com os Saduceus e Fariseus. Segundo Lucas,

Eles estavam muito perturbados porque os apóstolos estavam ensinando o povo e proclamando em Jesus a ressurreição dos mortos. (Atos 4.2)

No ano de 45 d.C., quando Paulo já havia partido em suas viagens missionárias (incluindo Atenas e Roma), o rei Herodes Agrippa mandou executar Tiago Boanerges, filho de Zebedeu, irmão de João e sobrinho de Pedro. Em seguida o próprio Pedro foi aprisionado (Atos 12.1,2). Em 66 d.C. um conflito com os gregos em frente ao Templo teve os Fariseus solicitando tropas romanas, o que lhes foi negado. Como resultado, os sacerdotes deixaram de coletar impostos para o Império e o governador romano mandou que as tropas invadissem o Templo para pegar o que lhes era direito. Judeus de toda parte passaram a atacar os romanos. As tropas passaram a crucificar todo aquele que fosse acusado de traição, Judeu, Grego ou Romano. Em pouco mais de 1 ano, os Fariseus haviam recrutado os Zelotes para tomar armas e massacrar os romanos na região. Agrippa II fugiu para a Galiléia e a Judéia declarou-se independente de Roma, voltando a usar o alfabeto hebraico e cunhar as próprias moedas.

O contra-ataque era certo: em meio à reconstrução de Roma, Nero destacou 30 mil soldados de 5 legiões para a Galiléia, exterminado as rebeliões e matando pelo menos 10 mil Judeus. Muitas lideranças dos Judeus em fuga da Galiléia criaram esquadras marítimas na costa do Mediterrâneo para impedir o fluxo de mercadorias da Fenícia para Roma. Em pouco tempo Jerusalém estava cercada, mas a cidade tinha 3 muralhas e muitos soldados, terminando por afastar as legiões até o mar, onde foram derrotadas, para surpresa do próprio imperador.

Em 67 d.C. chegam à região o general Vespasiano e seu filho Titus, com mais 2 legiões para se unirem aos soldados de Herodes Agrippa II. Até encurralarem novamente os Judeus em Jerusalém, pelo menos 100 mil foram mortos pelas tropas. Os Zelotes, fugindo para dentro da cidade, entraram em conflito com os Saduceus e Fariseus. Nero foi deposto pelo Senado e uma crise política abalou Roma: em poucos meses assumiram o trono Galba (jun/68 - jan/69), Salvius Otho (jan - abr/69) e Vitellius Germanicus (abr - dez/69). Vitorioso na Galiléia, o general Vespasiano seguiu para Roma, a fim de tomar o trono. Titus, muito menos diplomático que o pai, mandou erguer uma 4ª muralha para impedir a fuga dos Judeus e chegou a crucificar até 500 Judeus  num único dia. Quando os romanos finalmente entraram, se depararam com uma população faminta e entregue à pestilência. O Templo foi demolido e Jerusalém incendiada no ano de 70 d.C. Nas palavras de Titus, “Não há mérito em derrotar uma gente esquecida pelo seu próprio Deus”. Estima-se que mais de 1 milhão de Judeus tenham sido mortos.

A queda de Jerusalém e a destruição do Templo abalaram terrivelmente os Judeus em todo mundo, iniciando a era dos rabinos. Jesus faz uma referência a essa destruição com um trecho aparentemente  bem fora do contexto da viúva fazendo suas ofertas no Templo:

"Disso que vocês estão vendo, dias virão em que não ficará pedra sobre pedra; serão todas derrubadas … Quando virem Jerusalém rodeada de exércitos, vocês saberão que a sua devastação está próxima. Então os que estiverem na Judéia fujam para os montes, os que estiverem na cidade saiam, e os que estiverem no campo não entrem na cidade. Pois esses são os dias da vingança, em cumprimento de tudo o que foi escrito. Como serão terríveis aqueles dias para as grávidas e para as que estiverem amamentando! Haverá grande aflição na terra e ira contra este povo. Cairão pela espada e serão levados como prisioneiros para todas as nações. Jerusalém será pisada pelos gentios, até que os tempos deles se cumpram.” (Lucas 21.20-24)

Muitas cidades da Galiléia se renderam sem luta. Nesses casos, os Judeus foram feitos prisioneiros e levados para trabalhar para os romanos segundo suas habilidades. Um dos líderes de Yotapata, um sacerdote Judeu chamado Flavius Josephus, por exemplo, foi levado por Titus para documentar a queda de Jerusalém. Ele se tornaria um dos principais historiadores descrevendo o início do Cristianismo. Flavius Josephus documentou também a heróica resistência dos Zelotes em Masada. Nessa fortaleza construída por Herodes I no topo plano de uma grande rocha perto do Mar Morto, 970 Zelotes que escaparam do cerco a Jerusalém juntaram muitos pergaminhos de Qumran (pois os legionários incendiaram tudo por onde passaram), montaram uma muralha de terra e madeiras do palácio, que pudesse resistir às catapultas romanas, e ali lutaram por ainda 3 anos após a queda de Jerusalém. Titus liderou o cerco a Masada, aumentando uma rampa natural até as muralhas da citadela, onde incendiaram a proteção dos Judeus e entraram, para encontrar todos mortos. Uns poucos sobreviventes contaram a Josephus como todos ali escolheram “morrer livres” a sucumbir aos romanos. Seus muitos corpos foram enterrados pelos soldados em sinal de respeito e, séculos depois, quando as legiões voltaram a ocupar Masada, levantaram uma igreja (cristã) ali. Os manuscritos de Qumran que sobreviveram às legiões, incluindo os encontrados em Masada, validariam o evangelho de João no séc. 19.

EPÍLOGO (da 1ª parte)

O final do 1º século se daria com Roma sendo reconstruída, após uma violenta crise política entre os reinados de Nero e Vespasiano (68 - 69 d.C.). A Galiléia havia sido retomada pelo Império e Jerusalém estava em ruínas. Não há como negar que essas tensões favoreceram a saída dos missionários Cristãos da Judéia, em direção ao Egito, Síria, Grécia e mesmo a Itália. O banimento dos Judeus dos cargos políticos nos territórios romanos de certa forma também facilitou esse processo, eliminando a principal oposição aos Cristãos fora da cidade de Roma.

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LIVROS ANTIGOS E QUEIMADOS

Apollonius of Tyana - wikipedia
Biblical Archaeology Society, Masada - the dead sea’s desert fortress, 2014
First Jewish–Roman war - wikipedia
Great Fire of Rome - wikipedia
James, son of Zebedee - wikipedia
PBS - Secrets of the Dead, The great fire of Rome - Clues and Evidence
PBS - Secrets of the Dead, The great fire of Rome - Background
PBS - Secrets of the Dead, The great fire of Rome - Interview with fire investigator Dave Townsend
Raddato C, Magnum incendium Romae (the Great Fire of Rome, 64 AD) - Nero the Arsonist on screen, Ancient History et cetera, July 23th, 2015
Wasson DL, Roman daily life, Ancient History Encyclopedia. December 10th, 2013

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