sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A carne e o sangue

Imitação grotesca da obra de Leonardo da Vinci, em 1495-1498

Às vezes nos deparamos com uma passagem chocante na Bíblia. Embora sejam mais comuns no Velho Testamento (talvez devido ao quanto nossos valores morais e costumes mudaram), o Novo Testamento também tem suas pérolas dignas de filmes ou, mais propriamente, de guerras teológicas. Uma delas está no célebre pronunciamento de Jesus em alguma sinagoga de Cafarnaum:

Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá sede. … Aqui está o pão que desce do céu, para que não morra quem dele comer. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre. Este pão é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo. … Eu lhes digo a verdade: Se vocês não comerem a carne do Filho do homem e não beberem o seu sangue, não terão vida em si mesmos. Todo o que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Todo o que come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Da mesma forma como o Pai que vive me enviou e eu vivo por causa do Pai, assim aquele que se alimenta de mim viverá por minha causa. (João 6)

A tradição nos leva a pensar tranqüilamente numa ligação com a Última Ceia, em que Jesus reparte o vinho e o pão com seus discípulos. No entanto, é notável que esse pronunciamento escandaloso só é relatado por João, o discípulo amado. Bem, João é conhecido por expor discursos profundos de Jesus, mas a versão dele da Última Ceia nem cita Jesus repartindo a comida. Em especial, não diz nada sobre pão e vinho. Na mesa da Ceia tudo bem, mas seria estranho falar de pão e vinho numa sinagoga. Ao invés disso, na referida ceia, o Messias de João se põe a ensinar humildade lavando os pés dos discípulos, a começar por Pedro. Como sempre, fica a dúvida entre os relatos de João e os Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Dentro do “universo de João”, o discurso de Jesus seria mais conectado a outra fala também só apresentada por ele, entre Jesus e uma samaritana:

Se você conhecesse o dom de Deus e quem lhe está pedindo água, você lhe teria pedido e ele lhe teria dado água viva. … Quem beber desta água [do poço] terá sede outra vez, mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Pelo contrário, a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna. (João 4)

Da cena no poço de Jacó, fica evidente que Jesus costumava nomear coisas espirituais como elementos do mundo físico. Se Ele não era o homem-água, talvez possamos ficar mais tranqüilos quanto ao fato de Ele incitar as pessoas a comerem sua carne e beberem seu sangue. Mas os homens na sinagoga não entenderam assim. Levaram ao pé da letra e, de fato, muitos discípulos se afastaram depois desse discurso. Não parecia (e ainda não parece) linguagem figurada. Afinal, o Messias primeiro se nomeia o pão-da-vida, depois manda que O comam e arremata dizendo que é necessário come-Lo e beber Seu sangue! Do que Jesus falava, afinal?

O SIGNIFICADO DO SANGUE E DA CARNE

No Velho Testamento, “sangue” sempre está associado a uma morte violenta, seja por sacrifício ou ou assassinato. Um aparecimento disso está na ocasião em que Abner, um dos generais de Saul (então rei), morre após negociar com Davi:

[Lamento de Davi] Eu e o meu reino, perante o Senhor, somos para sempre inocentes do sangue de Abner, filho de Ner. Caia a responsabilidade pela morte dele sobre a cabeça de Joabe e de toda a sua família! (2ª Samuel 3.28,29)

Outro exemplo (também de Davi) está em sua súplica pela vida durante os anos em que Saul o perseguia:

[Senhor] Que proveito há no meu sangue, quando desço à cova? Porventura te louvará o pó? Anunciará ele a tua verdade? (Salmo 30.9)

Na mesma linha de raciocínio, “comer a minha carne” está ligado a “beneficiar-se com a minha morte”:

Quando os malvados, meus adversários e meus inimigos, se chegaram contra mim, para comerem as minhas carnes, tropeçaram e caíram. (Salmo 27.2)

Numa ocasião em que Davi tentava recuperar Belém dos Filisteus, ele comentou o quanto gostaria de beber da água do poço de Belém. Seus mais valorosos guerreiros então se infiltraram através do campo inimigo e trouxeram tal água para Davi. Ressentido de ter arriscado por tão pouco a vida deles, Davi resmunga:

Nunca meu Deus permita que faça tal! Beberia eu o sangue destes homens com as suas vidas? Pois com perigo das suas vidas a trouxeram [a água]. E ele não a quis beber. (1ª Crônicas 11.19)

Nesse trecho, “beber do sangue” também é usado com o sentido de “aproveitar-se da morte violenta de outro”. Dessa forma, é provável que as palavras alarmantes de Jesus fossem uma indicação de que os homens precisariam aproveitar de Sua morte para serem salvos. Apenas lembrando, contudo, muitos discípulos se constrangeram após tomar literalmente o sentido de comer Sua carne e beber Seu sangue.

A QUESTÃO DA CEIA EM JERUSALÉM

Obviamente, durante a ceia que antecedia a Páscoa, Jesus não disse “isso é um símbolo do meu corpo e aquilo é um símbolo do meu sangue”. Ele foi muito específico em suas palavras.

E, comendo eles, tomou Jesus pão e, abençoando-o, o partiu e deu-lho, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho; e todos beberam dele. E disse-lhes: “Isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que por muitos é derramado. Em verdade vos digo que não beberei mais do fruto da vide, até àquele dia em que o beber, novo, no reino de Deus.” E, tendo cantado o hino, saíram para o Monte das Oliveiras. (Marcos 14.22-26)

O argumento das palavras de Jesus é fortemente usado pelos católicos ao defender a “transubstanciação”, em que o pão e o vinho se transformariam materialmente no corpo e sangue de Jesus. Em sua 1ª carta à igreja de Corinto, Paulo interpreta essa cena como um sinal da comunhão dos cristãos com Jesus.

Não é verdade que o cálice da bênção que abençoamos é uma participação no sangue de Cristo, e que o pão que partimos é uma participação no corpo de Cristo? Por haver um único pão, nós, que somos muitos, somos um só corpo, pois todos participamos de um único pão. (1ª Coríntios 10.16,17)

A esse respeito, Paulo vai ainda mais fundo quando nos descreve uma revelação que ele teve a partir do próprio Jesus.

Pois recebi do Senhor o que também lhes entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão e, tendo dado graças, partiu-o e disse: "Isto é o meu corpo, que é dado em favor de vocês; façam isto em memória de mim". Da mesma forma, depois da ceia ele tomou o cálice e disse: "Este cálice é a nova aliança no meu sangue; façam isto, sempre que o beberem, em memória de mim" (1ª Coríntios 11.23-25)

É surpreendente que Paulo tenha recebido revelações sobre uma cena anterior a sua conversão. A semelhança com o relato de Marcos é notável. Historicamente, Paulo escreveu sua carta aos Coríntios por volta de 40 d.C., enquanto o evangelho de Marcos data de 75-80 d.C. Sabemos do livro de Atos que Paulo e João Marcos conviviam.

Percebendo isso, ele [Pedro] se dirigiu à casa de Maria, mãe de João, também chamado Marcos, onde muita gente se havia reunido e estava orando. (Atos 12.12)

Tendo terminado sua missão, Barnabé e Saulo voltaram de Jerusalém, levando consigo João, também chamado Marcos. (Atos 12.25)

Alguns historiadores até mesmo apontam algumas cartas de Paulo como fonte de trechos dos evangelhos, em especial alguns como este descrevendo a Última Ceia. Curiosamente, Paulo teria recebido essa descrição como uma revelação e João Marcos, talvez um participante presencial da Ceia, o teria incluído em sua narrativa, sendo reproduzido por Mateus e Lucas, também participantes. O evangelho de João, feito de forma independente e com propósitos de catequese, ficou com o discurso constrangedor de Jesus que descrevemos anteriormente. É provável que a cena da Ceia não pudesse acrescentar nada de mais chamativo do que aquilo.

Irmãos, quero que saibam que o evangelho por mim anunciado não é de origem humana. Não o recebi de pessoa alguma nem me foi ele ensinado; pelo contrário, eu o recebi de Jesus Cristo por revelação. (Paulo aos Gálatas 1.11,12)

Um documento muito antigo do ano 60 d.C., recuperado no séc. 19, chamado Didaquê (ensino) ou Ensino dos Doze Apóstolos, entretanto, traz uma versão bem distinta da Última Ceia:

Celebre a Ceia do Senhor assim: Diga primeiro sobre o cálice "Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre". Depois diga sobre o pão partido: "Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre. (Didaquê 9:1-3)

Esse conteúdo é bem simples, semelhante à 1ª parte da descrição de Marcos:

E, comendo eles, tomou Jesus pão e, abençoando-o, o partiu e deu-lho, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho; e todos beberam dele. (Marcos 14.22,23)

A famosa exortação em relação ao corpo e o sangue sendo servidos na Ceia, que provavelmente se originou em Paulo (e concordava com o ensino de João, embora não factualmente) foi adicionada a partir deste ponto. Assim, uma interpretação intimista da linguagem figurada de Jesus na sinagoga de Cafarnaum pode ter sido convertida em um comportamento e falas simbólicos na situação da Ceia, usada exaustivamente como método de Catequese.

Sem dúvida, a inclusão foi seguida desde cedo pelos cristãos. Inácio de Antioquia, que tinha sido um discípulo de João e que escreveu uma carta à igreja de Smyrna em 110 d.C., disse, sobre "aqueles que sustentam opiniões heterodoxas", que "se abstêm das Eucaristia e da oração, porque eles não confessam que a Eucaristia é a carne de nosso Salvador Jesus Cristo, carne que sofreu por nossos pecados e que o Pai, em sua bondade, ressuscitou". (The Epistle of Ignatius to the Smyrnaeans cap. 6-7)

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PARA LER ALMOÇANDO

Andrew M. Fountain, Eating Christ's Flesh and Drinking His Blood Part 1
Catholic Answers, Christ in the Eucharist, 2004
Instrução (didática) – tradução grega para DOUTRINA DOS APÓSTOLOS
La Vista Church of Christ - Questions and Answers

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