quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Procurando Nicolau


A Revelação que João teve em Patmos quanto ao apocalipse serviu como um marco no Novo Testamento, talvez até maior do que os Evangelhos. Afinal, trata-se de uma exposição póstuma do começo e o fim da humanidade (pelo próprio Senhor) sem o rigor literário das cartas de Paulo ou a narrativa histórica dos Evangelhos. É uma visão e, como o sonho de Nabucodonosor, rica em imagens que se encoram na realidade e, precisando de uma interpretação, essa Revelação inevitavelmente se presta bem a fins políticos.

Curiosamente, a visão é dirigida aos anjos das sete igrejas da Ásia: Éfeso (que esqueceu o seu primeiro amor), Esmirna (que será perseguida), Pérgamo (que deve se arrepender), Tiatira (com seus falsos profetas), Sardes (que adormeceu em seu propósito), Filadélfia (que tem resistido bravamente) e Laodicéia (insípida para Deus). No tempo de Jesus, muito provavelmente nenhuma dessas comunidades cristãs existia. Também, a menos que pensemos ser a visão toda uma elaborada parábola, o conteúdo dela se aproxima muitíssimo mais aos escritos de Paulo durante a perseguição religiosa aos cristãos do que às pregações de Jesus sobre o Reino de Deus.

Tomando os elementos do Novo Testamento como fontes de discussão e ensino (as cartas de Paulo têm esse propósito claro) acerca da nova doutrina ensinada por Jesus, a Revelação sempre foi interpretada como sendo um ensino sobre valores aprovados ou reprovados por Deus, além, é claro, da exposição do tormento destinado aos não cristãos. Curiosamente, a própria mensagem destrói seu caráter generalista (referente aos pecados de TODA cristandade) ao direcionar-se para comunidades específicas, que são cuidadosamente descritas na prévia de cada exortação. Uma dessas exortações, que pretendo tratar aqui, é dada à igreja de Éfeso: ‘há uma coisa a seu favor: você odeia as práticas dos nicolaítas, como eu também as odeio’ (Apocalipse 2.6). Também a Pérgamo é dito: ‘você tem aí pessoas que se apegam aos ensinos de Balaão, que ensinou Balaque a armar ciladas contra os israelitas, induzindo-os a comer alimentos sacrificados a ídolos e a praticar imoralidade sexual. De igual modo você tem também os que se apegam aos ensinos dos nicolaítas’ (Apocalipse 2:14-15).

A Revelação faz, assim, dos ‘nicolaítas’ um grupo a ser perseguido e expulso da comunidade religiosa. Não faz, entretanto, nenhuma descrição desse grupo, que parecia ser suficientemente conhecido para não precisar de explicações, mas não deixou nenhum documento para sabermos quem eram, e portanto o que odiar porque Jesus odiou. A quem possa interessar, os séculos 1 e 2 da cristandade não foram pobres em documentos; muito pelo contrário, os séculos seguintes à morte de Jesus viram nascer uma profusão de doutrinas ‘cristãs’ amparadas na passagem do Filho de Deus pela Terra, mas cuja origem e conteúdo tinham mais a ver com uma fuga da ortodoxia judaica e do racionalismo grego do que se tratavam de seguir os passos do Messias. Jesus se tornou conhecido e, em nome Dele, fortalecidos por uma revelação Dele ou por causa Dele as pessoas criaram e recriaram todo tipo de doutrinas que chamamos de ‘gnósticas’ (gnose = conhecimento especial, filosofia). Vale lembrar que a primeira versão do cânon cristão, ou bíblia - de biblioteca - só foi idealizada por Sto. Irineu de Esmirna (ok, a igreja perseguida), bispo de Lyons por volta de 140 d.C. Mesmo assim, não ficaram documentos esclarecendo quem eram os ‘nicolaítas’. Por enquanto, odiemos eles sem saber quem eram.

A citação extra-bíblica mais antiga dos ‘nicolaítas’ é feita exatamente por Sto. Irineu de Esmirna, em seu livro Adversus Haereses (Contra as heresias). Nesse livro, ele identifica diversos ramos ‘gnósticos’ do Cristianismo e os contrasta com as bases ‘católicas’ da fé. Sto. Irineu acreditava que esses grupos ‘gnósticos’ se reuniam em segredo fora da Igreja e deturpavam o que era ensinado, misturando o Cristianismo a filosofias orientais. No cap. 26 da 1ª parte do livro, ele aponta brevemente que o fundador do ‘nicolaísmo’ foi o Nicolau de Atos 6.5, que conduziu uma seita de total indulgência quanto ao adultério e o consumo de alimentos dedicados aos ídolos, diferenciando Jesus do Pai e do Cristo/Espírito Santo. Não há outras descrições do grupo. É muito provável que Sto. Irineu apenas tenha emprestado os adjetivos usados no Apocalipse para os seguidores de Balaão, combinando isso com disputas que haviam sobre a natureza de Cristo no tempo dele mesmo.

… Balaão, que ensinou Balaque a armar ciladas contra os israelitas, induzindo-os a comer alimentos sacrificados a ídolos e a praticar imoralidade sexual. (Apocalipse 2.14)

Por volta de 200 d.C. os nicolaítas foram novamente citados por Clemente de Alexandria, um filósofo grego que se converteu ao Cristianismo e dedicou vários livros a mostrar as bases lógicas e poderosas da sua religião. Por isso, ele é considerado por muitos um dos pais do Cristianismo. No 2º volume do livro Stromata (variedades), no cap. 20, ele descreve brevemente os seguidores de Nicolau como aprovadores de toda indulgência, ou seja, pessoas que viam os impulsos naturais do homem (fome, sede, frio, sexo, etc) como motivadores e justificadores de todas as suas ações. É também muito provável que Clemente tenha apenas pego os adjetivos dos seguidores de Balaão no Apocalipse e aplicado aos nicolaítas, como fez Sto. Irineu. Ele, por sua vez, apontava os estímulos internos como ‘auxiliares’ na vida humana.

Depois disso os ‘nicolaítas’ foram citados por Epiphanius de Salamis, um bispo da ilha de Chipre no séc. 4, em seu famoso livro Panarion. O Panarion era uma obra extensa expondo detalhadamente as seitas passadas e conhecidas no tempo de Epiphanius. É provável que Epiphanius tenha incluído partes do Adversus Haereses em sua coletânea. No cap. 25 do Panarion, ele também afirma que o fundador da seita em questão é o Nicolau referido em Atos 6.5, adicionando que ele era encarregado de cuidar das viúvas. Nessa versão, esse Nicolau teria uma bela esposa e decidiu não ter mais relações sexuais com ela para imitar os que se devotavam a Cristo, mas não podendo manter seu propósito, passara a afirmar a necessidade do cristão em ter relações sexuais todos os dias, além de humilhar publicamente a esposa e outras pessoas. É impossível não ver uma temática medieval (do séc. 4, época de Sto. Agostinho) nessa explicação do ‘nicolaísmo’, o que dificilmente encontraria sentido nos sécs. 1 e 2 do apogeu romano.

No Panarion, além disso, Epiphanius mistura muito o que diz dos ‘nicolaítas’ com o que diz sobre o ‘apócrifo de João’, um escrito gnóstico (provavelmente muito popular) do séc. 2. O ‘apócrifo de João’ é supostamente uma revelação de Jesus a João, irmão de Tiago, filho de Zebedeu, descrevendo a criação do mundo por uma força suprema chamada Monad, que fez para si uma parte feminina chamada Barbelo, assim procriando na forma de ‘anjos’ chamados Armozel, Oriel, Davethai, Eleleth, etc, cada um deles num ‘nível’ dos céus, onde um desses anjos chamado Sofia cria um mundo à parte para si e um servo arrogante chamado Yaldabaoth. Segue-se a criação do homem por Yaldabaoth e uma tentativa de Monad para remediar tudo colocando sua luz no homem. Obviamente essa versão do Gênesis se distancia muito do que é mostrado em toda a Bíblia, sendo uma mistura elaborada de doutrinas gregas ‘gnósticas’ com o Cristianismo, representado unicamente pela pessoa de Jesus e o receptor da Revelação, porém sem qualquer conexão além dos nomes com os personagens bíblicos.

Dessa forma, vemos que o Apocalipse não descreve ou dá referências quanto aos ‘nicolaítas’ e os livros mais antigos concordam no máximo quanto à fundação da seita pelo Nicolau do livro de Atos, um dos principais apóstolos. Seria de se esperar que a Revelação a João em Patmos falasse algo sobre esse apóstolo desviado, cuja seita o próprio Jesus odeia (diferentemente de tudo o que Ele diz nos Evangelhos), mas nada é dito sobre o Nicolau. Em outras palavras, continuemos a odiar alguém que não conhecemos. O que se sabia dessa seita desapareceu, provavelmente, antes de Sto. Irineu.

PODE LER QUE ESSES EXISTEM (AINDA)

Apócrifo de João (texto em inglês)
Clemente de Alexandria, wikipedia
Clemente de Alexandria, Stromata vol. 2 (texto em inglês)
Epiphanius de Salamis, wikipedia
Epiphanius de Salamis, Panarion (texto em inglês)
Irenaues de Esmirna, wikipedia
Irenaeus de Esmirna, Adversus Haereses (texto em inglês)

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