sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Davi o caçador de gigantes?


Todos conhecemos a importância de Davi como iniciador de um ciclo frutuoso em Israel. De pastor de ovelhas, Davi foi ungido pelo profeta Samuel e tornou-se músico do palácio real, então amigo fiel do príncipe sucessor, perseguido político, rei e conquistador dos povos vizinhos. Davi conseguiu por vias militares que o povoado de Judá se unisse às tribos do norte e Israel finalmente foi um reino só. Os não-israelitas foram subjugados, a fortaleza de Sião foi tomada dos Jebuzeus e Jerusalém foi estabelecida como capital do império. Mil anos mais tarde, o Messias nasceria ainda da linhagem de Davi. Embora Davi tenha sido um rei singular na história dos Judeus e da Cristandade, tido como exemplo religioso pelas gerações seguintes, nem lembramos disso quando lemos o título desse post: Davi foi o camarada franzino que duelou sem armas e venceu Golias, o campeão Filisteu. Ponto. São Davi, protetor dos fracotes valentes!

Mas o próprio Davi dava testemunho ao rei Saul de suas habilidades: ‘Teu servo toma conta das ovelhas de seu pai. Quando aparece um leão ou um urso e leva uma ovelha do rebanho, eu vou atrás dele, atinjo-o com golpes e livro a ovelha de sua boca. Quando se vira contra mim, eu o pego pela juba, atinjo-o com golpes até matá-lo. Teu servo é capaz de matar tanto um leão quanto um urso’ (1ª Samuel 17.34-36). Eu não esperaria hoje encontrar ursos em Israel, quanto mais matar um com uma faca. Com sorte fugiria (a ovelha que se vire), com azar me juntaria a ela. Pelo menos sabemos que Davi se dava muito bem em batalhas corporais; como um Splinter ou Yoda, talvez não fosse tão indefeso assim. Talvez nem fosse pequeno ou franzino.

Mas a polêmica sobre Davi está justamente no combate com Golias. Seguidor do modelo grego de guerrear, Golias de Gate era um filho de Rafa e apostava a servidão do seu povo na sua vitória pessoal contra os Judeus. Mais ou menos como Aquiles dos gregos e Heitor de Tróia. Rafa era um vale fértil na atual El-Bukéia, ao sudoeste de Jerusalém, onde viviam ‘gigantes’ fortes e altos, chamados Refains, Emins, Enaquins ou Zanzumins (Deuteronômio 2.10-11, Deuteronômio 2.20). O desafio aos Judeus era que também apostassem sua servidão na vitória de um campeão.

Começa aí a dúvida. Quando ocorreu esse desafio? Os judeus triunfaram, mas quem derrotou Golias? Segundo a descrição em 1ª Samuel 17.1-10, a batalha foi no reinado de Saul, no vale de Elá, ao lado da colina de Socó. Davi matou Golias com uma pedra e cortou sua cabeça com a espada do próprio Golias. Entretanto, o relato deixa algo duvidoso quando afirma que ‘Davi pegou a cabeça do filisteu, levou-a para Jerusalém e guardou as armas do filisteu em sua própria tenda.’ (1ª Samuel 17.54). Jerusalém, nesse tempo, era ainda uma fortaleza dos Jebuzeus, que somente seria tomada muitos anos mais tarde quando Davi fosse rei e conduzisse o exército. Mais à frente, a escritura de 1ª Samuel coloca Davi pedindo uma arma ao sacerdote Aimeleque (ao sacerdote?), em Nobe, quando Aimeleque lhe ofereceu a espada de Golias, que ele havia guardado junto com o colete sacerdotal! Pegando a espada “sagrada”, Davi desaparece com ela de cena e não se fala mais nisso.

Quando Davi tornou-se rei, ele reuniu um grupo de guerreiros valorosos chamados ‘os trinta’, que pareciam liderar as campanhas militares (por exemplo contra os Filisteus ou na conquista de Jerusalém, a fortaleza dos Jebuzeus). Existem dois relatos numerando os guerreiros, com algumas diferenças na escrita dos nomes ou a falta de vários deles. Esses relatos encontram-se em 2ª Samuel 23.8-39 e 1ª Crônicas 11.10-47. Dentre todos os guerreiros apresentados, vamos focar em um deles chamado Elanã, filho de Dodô, de Belém. Dependendo da tradução, seu nome aparece como Elcanã ou El-canã. Há evidências de que Dodô não se refere a um nome incomum entre os israelitas, mas uma corruptela de ‘Davi’. De fato, a escrita hebraica para Dodô é DWDW, enquanto a escrita para Davi é DWD. Considerando-se o estado de deterioração dos originais que os textos em grego e latim usaram e a falta de separação de palavras, é perfeitamente plausível essa confusão dos copistas. Importa-nos que Elanã/Elcanã era um dos 30 e não havia outro com esse nome no grupo; a expressão ‘Elanã/Elcanã dos 30’ é usada na descrição de outras peripécias do valente.

Segundo a descrição de 1ª Crônicas 20.4-8, a batalha contra Golias ocorreu no reinado de Davi. Elanã/Elcanã filho de Jair (haha, o pai verdadeiro dele!) era um dos 30 grandes guerreiros de Davi e matou Golias num confronto onde vários filhos de Rafa pereceram. Boa parte das traduções acrescenta ‘Lami, irmão de Golias’, embora o texto hebraico traga ‘bethallahmi’ (provavelmente belemita, ou ‘de Belém’), que o copista provavelmente interpretou como ‘bet hal Lahmi’ (irmão Lami). Assim, ficou dito que, na batalha de Gezer, Elanã/Elcanã matou Lami, um filho de Rafa com a precisa descrição de Golias. No texto de 2ª Samuel 21.15-22, curiosamente, Elanã/Elcanã é filho de Jaaré-Oregim (Jair tecelão), um dos 30 guerreiros de Davi, e mata Golias de Gate (sim, ele mesmo) numa batalha em Gobe onde muitos Refains morreram.


Diferentes locais possíveis para o combate de Golias: Gezer, Gobe (hoje Qeiyafa) e Elá (entre Azekah e Socoh).

São dois relatos da morte de Golias. Num deles, o favorito, Davi não é sequer soldado, Saul é rei e Davi lança um pedra que miraculosamente mata o grande campeão filisteu sem um confronto real dos exércitos. Curiosamente, nessa versão Golias oferece a servidão do seu povo se ele perdesse; ele perde, mas os judeus decidem matar todo mundo ao invés de levá-los como escravos. No outro relato, Davi é o rei, há uma batalha real dos exércitos, Golias de Gate é somente um dos maiores Filisteus e morre pelas mão de Elanã/Elcanã que era um dos maiores judeus. Esses são os dois relatos dos judeus; os Filisteus não deixaram escrita que permitisse uma outra versão.

As evidências históricas são de que grandes reis gregos, judeus, assírios, persas, etc eram costumeiramente incluídos como personagens de façanhas militares envolvendo seus deuses. Pode ser o que aconteceu com a história de Davi. Por exemplo, as versões essênias mais antigas citam a altura de Golias como sendo 4 cúbitos e meio (quase 2 metros), ao invés de 6 cúbitos e meio (quase 3 metros). Diversas versões também não contém o trecho de 1ª Samuel 17:55–58, onde afirma-se que Saul não conhecia Davi (apesar de tê-lo como músico em seu palácio e oferecer-lhe ele mesmo uma armadura). Entretanto, não temos outras referências de Davi no início de seu reinado que não a Bíblia. Sabemos dos registros arqueológicos que os Filisteus foram derrotados e Gate, a maior cidade deles, foi arrasada no início do séc 9 a.C.

Os Judeus são extremamente adeptos de se discutir temas religiosos. Não temos, como saber exatamente quem matou Golias de Gate. Vale a pena bater boca sobre isso.

PODE LER, Ó GUERREIRO

Biblia.com.br, Dicionário bíblico: refains
Bíblia em português com atlas, 2 Samuel 21:22
Greenberg G, 101 Myths of the Bible, cap 96
Nally JR, Reformed Answers: who killed Golliath?
Wikipedia, Khirbet Qeiyafa

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!