terça-feira, 12 de agosto de 2014

Esteja Disponível

Getsemani - pintura de Carl Heinrich Bloch (séc. 19)

Vai aqui um super elogio ao livro “Em 6 passos o que faria Jesus - novíssimo manual de conduta do seguidor de Jesus”, do Paulo Brabo. Estou finalmente dedicado a essa obra, depois de muito procurá-la, e lendo-a como acho que merece: muuuuuuuuito lentamente. Classifico-a como uma das obras terríveis com que já topei, cujas afirmações são profundas e significativas o suficiente para que seja muito difícil apoiar ou negar qualquer uma delas, tanto quanto deixá-las para lá. Ao todo, o livro reúne 6 observações sublimes e talvez chocantes sobre a pessoa de Jesus.

O 5º Capítulo chama-se “Permaneça disponível para o momento”. Em poucas palavras (minhas), ele fala sobre o conceito judaico de tempo e argumenta que Jesus não ocupava seu tempo como nós ocupamos o nosso. Ele não procurava por nenhum tipo de produtivismo, ou um ‘carpe diem’ que significasse abarrotar seus minutos com atividades úteis ou prazerosas. Ao contrário, surfava graciosamente no presente, sem amarras no passado (nem no Dele mesmo) ou preocupações prévias com o futuro. Em nenhum momento Jesus estaria pensando em fazer algo diferente do que Ele estava de fato fazendo (desligue seu celular depois de ler isso), e sempre dedicava seu momento completamente à pessoa com quem estava (ainda não desligou?).

No entanto, estou escrevendo para colocar um pouco areia nessa visão bonita e simpática, depois de um razoável tempo pensando a respeito. E faço isso com a má intensão de quem conhece o sofrimento de pensar demasiadamente no passado ou no futuro, o que seria, em um aspecto temporal-mentalístico, o contrário de Jesus.

NARRATIVA BÍBLICA

O primeiro ponto se trata do estilo dos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. São livros extremamente descritivos, narrando com riqueza de detalhes as AÇÕES de Jesus. Nenhum deles é mentalista ou preocupado com pensamentos das pessoas, seja de cada autor, de Jesus ou de outros personagens. O verbo mais raramente encontrado nesses livros é ‘pensou’. A versão mais próxima disso está em descrever pessoas com ‘coração mau’, significando mais que faz cometiam maldades do que as maquinavam. Dessa forma, todo o relato sobre Jesus é escrito como se fosse um contínuo presente em que ninguém pensa ou planeja algo, mas simplesmente faz. Exceto nos relatos verbais, não há evidências de que qualquer um se angustiasse do passado ou tivesse alguma expectativa para o futuro. Na verdade, a maior parte das falas sobre o futuro é feita justamente por Quem poderia fazer isso com total precisão. Numa curiosa ocasião, Pedro faz uma pequena previsão na forma de ‘Jamais te abandonarei, Senhor’, quando Jesus o repreende exemplarmente.

Assim, a própria estrutura nos Evangelhos (e portanto do que sabemos sobre Jesus) é uma seqüência de ações e não pensamentos. Se Jesus se angustiava do passado ou desejava algo diferente para o futuro (pouco provável, pois Ele fala muito e autoritativamente sobre o futuro), a estrutura da narrativa bíblica nos nega essa informação. Claro que Jesus parece sempre dedicado ao presente: mas se fosse diferente, ninguém nos diria.

EVENTOS INOPORTUNOS

Para alguém totalmente focado no presente, nada é inoportuno. Nem mesmo uma mudança necessária, como quando João Batista foi preso. O envolvimento de Jesus e o Batista era claro, eram até parentes, e de alguma forma muito humana parece que Jesus quis continuar um passado que Herodes extinguira duramente, levando consigo as palavras que eram a pregação do Batista. Jesus deixou Nazaré pregando ‘Fazei penitência, porque o Reino de Deus está próximo’. E esse foi seu começo de ministério!

Sem dúvida Jesus era uma pessoa disponível para quem o procurasse, para todos os doentes, leprosos, aleijados e sofredores que levassem a Ele. E estava disponível inclusive para aqueles que fossem em nome dos doentes, como um certo centurião romano de quem o servo estava sofrendo. Mas isso não o impedia de desejar e querer como as outras pessoas:

Um mestre da lei aproximou-se e disse: 'Mestre, eu te seguirei por onde quer que fores'. Jesus respondeu: 'As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça'. (Mateus 8.19-20)

E de repente Jesus tem alguma pretensão de ser cuidado pelos seguidores, após tanto cuidar dos mesmos. No relato de Lucas, Jesus passa vários outros ensinamentos aos ‘doutores da lei’, sugerindo que, além de pedir abrigo em uma casa, talvez tenha se aproximado mais da alta sociedade de Cafarnaum. A eles, como geralmente em relação aos religiosos, Jesus se mostrava bem menos solícito: um queria enterrar o pai, Jesus negou-lhe. Outro queria despedir-se de sua família, e também negou-lhe. Ainda em Cafarnaum, Jairo (outro chefe da sinagoga) se dispôs como seu seguidor e veio suplicar sua ajuda divina.

A mãe e os irmãos de Jesus também foram de Nazaré a Cafarnaum atrás de um famoso profeta daquelas terras. Quando chegaram ali (eles que não creram em Jesus como o Messias, em Nazaré), encontraram um Jesus pouco solícito em recebê-los: ‘Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos? Aqui [ao meu redor] estão minha mãe e meus irmãos! Quem faz a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe’. (Marcos 3.33-35)

Mas Jesus não foi inflexível só com pessoas. Atravessando o lago de Genesaré (que levaria 2-4h para ser cruzado em um barco) na direção de Decápolis, veio uma tempestade. Jesus foi receptivo à ventania até que os discípulos o acordaram. Nesse momento, a ventania lhe tornou-se inoportuna e foi extinta com a mesma rapidez que Jesus negou aos doutores cuidarem das suas coisas antes de o seguirem.

Claro que as curas de Jesus (na sinagoga inclusive) chamariam a atenção dos fariseus ou ‘doutores da lei’. E nem todos lhe dariam um teto ou suplicariam por ajuda. Assim, quando os chefes de Cafarnaum começaram a planejar a morte de Jesus (talvez um rico como Mateus tivesse especial acesso a esse círculo), Ele também encerrou seus ensinamentos nas sinagogas. Isso argumenta a favor da flexibilidade Dele quanto às adversidades do presente, pois Jesus simplesmente transferiu seu local de pregação para perto do lago.

Por outro lado, Jesus chegou a afirmar que tinha vindo para os ‘da casa de Israel’ e, portanto, uma cananéia teria de deixar sua filha com seus demônios. ‘Não se deve jogar aos cães o pão dos filhos.’ (Mateus 15.26) parece a frase de alguém que não está disponível. Insistente, a mãe Lhe argumentou que até os cães comem das sobras e migalhas dos filhos, Jesus foi convencido de sua fé e curou-lhe a filha. Reparemos que não se tratava de alguém incrédulo, muito menos de coração mau, era simplesmente o caso do local de nascimento daquela senhora. Jesus tinha um plano e não se afastaria dele.

Noutra ocasião, sabemos de Jesus saindo de Betânia a procurar figos numa árvore, porém fora da época de figos. Se Jesus tinha fome, era difícil crer que não imaginava os frutos suculentos, que não deixava o presente atrás de algo totalmente incerto como buscar frutos numa árvore a esmo. Sim, e até Ele se frustraria. ‘Ninguém mais coma de seu fruto’ (Marcos 11.14) e foi o fim de uma figueira.

ANGÚSTIA

E para quem ainda aposta na idéia de um Jesus que simplesmente resolvia os problemas referentes ao presente a anunciava o futuro, certa noite nosso Messias foi ao jardim de Getsêmani, no Monte das Oliveiras. Numa cena famosa do cinema:

'Pai, se queres, afasta de mim este cálice; contudo, não seja feita a minha vontade, mas a tua'. Apareceu-lhe então um anjo do céu que o fortalecia. Estando angustiado, ele orou ainda mais intensamente; e o seu suor era como gotas de sangue que caíam no chão. (Lucas 22.42-44)

Não era Jesus lamentando o próprio futuro? Acudido pelos céus e ainda assim tomado de terror? Em poucas horas Ele seria preso, acorrentado, machucado e iniciaria um caminho que o conduziria ao sofrimento e à morte. Sim, Jesus estava prisioneiro de um futuro terrível enquanto reafirmava sua missão na ‘casa de Israel’.

CONCLUINDO

Não deixando de agradecer pela oportunidade de ver o quão humano Jesus parecia, irredutível à vezes, centrado demais ou sofrendo por antecipação, o 5º Capítulo do ‘Novíssimo Manual’ acaba mostrando um Jesus tão dedicado e tentado como qualquer um de nós. Ele era ríspido quando o atrapalhavam e se angustiava pelo futuro que (ao contrário de nós) de fato conhecia.

Se fosse possível riscar ‘Esteja Disponível’ como título, talvez fosse mais certo dizer ‘Sofra, erre e persista’. Mas isso não pareceria humano demais para que as pessoas cressem?

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Exemplo de capítulo só pra ter vontade
Paulo Brabo, Em 6 passos o que faria Jesus - novíssimo manual de conduta do seguidor de Jesus, Ed. Garimpo, 2009

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