terça-feira, 1 de julho de 2014

Platão e o pecado da carne



_ Belo filho, disse o Eremita, todo homem tem alguma semelhança de Deus, porque todo homem é bom enquanto é criatura, e enquanto existe com entendimento e vontade. A bondade que o homem tem é semelhante à Bondade de Deus, porque a Bondade, que é de Deus, coloca semelhança de si mesma no entendimento e na vontade do homem. E como o homem tem alguma semelhança de Deus, tem por natureza amar e conhecer seu semelhante, isto é, Deus. Mas como o homem não sabe nem deseja usar sabiamente a semelhança que tem com Deus, atenta contra sua própria semelhança e contra Deus. Por isso cada homem deseja ser Deus. Logo, a desordem dos homens que não amam um Deus faz o mundo estar em sofrimento, em desordem e erro, e Deus lhes dá liberdade para que possam amá-Lo e conhecê-Lo, para que sejam glorificados se livremente e sem constrangimento de vontade desejem amá-Lo e conhecê-Lo.

(Ramon Lull, Félix o El Libre de meravelles, 1288)

O grego Platão definiu o mundo como composto por algo Ideal (literalmente, derivado das idéias) e algo Perceptível, ou que conhecemos. O Mundo feito por Deus Perfeito, segundo a filosofia de Platão, é perfeito. No entanto, para conhecermos o mundo, nós precisamos de sensações que são limitadas e, portanto, imperfeitas. Ele queria dizer com isso que não vemos todos os detalhes, não ouvimos todas as nuances, não sentimos todos os sabores e talvez até não tenhamos meios de provar ou experimentar tudo o que há no mundo. Então, nosso Mundo Interior, é imperfeito e distinto do Mundo feito por Deus. Essa distinção de Platão é interessante quando tomamos que EM NOSSA IDÉIA existe um mundo “perfeito” que deriva de SENSAÇÕES IMPERFEITAS sobre um mundo criado por DEUS PERFEITO. A pessoa que você mais ama sempre é, para você, mais bela do que o perceptível, e distinta da pessoa que Deus criou.

Platão coloca o mundo perceptível como um gargalo entre a realidade de Deus e a realidade do homem, com a limitação das sensações divergindo uma coisa da outra. A carne, em outras palavras, faz o imperfeito. Seu exemplo mais notável disso (exemplo = demonstração imaginativa, como Ramon Lull também faz) certamente foi a alegoria da caverna. Num de seus livros, ele descreve uma caverna onde pessoas vivem enxergando sombras projetadas em uma parede, e acreditando que elas representam o mundo. Platão emendava que era dever do filósofo deixar a caverna e aventurar-se na luz do sol, para ver o que as coisas realmente eram.

Na filosofia judaica, também havia o Deus perfeito e o homem imperfeito, por uma questão de poder. Também, enquanto os gregos colocavam o perfeito e o imperfeito como misturados no mundo e no homem, os judeus definiam pessoas e objetos.

O homem nascido de mulher vive pouco tempo e passa por muitas dificuldades. … Fixas o olhar num homem desses? E o trarás à tua presença para julgamento? Quem pode extrair algo puro da impureza? Ninguém! Os dias do homem estão determinados; Tu [Senhor] decretaste o número de seus meses e estabeleceste limites que ele não pode ultrapassar. (Jó 14.3-5)

E porque Jó era impuro, se até o Senhor o elogiava? Porque era mortal, e se sabia fraco. Da corrupção de Adão leváramos esse fardo, de falha do homem quanto ao ideal (platônico) de não sentir dor, não adoecer, não morrer. Mas Deus inspirava a perfeição ao homem caído:

A lei do Senhor é perfeita, e revigora a alma. Os testemunhos do Senhor são dignos de confiança, e tornam sábios os inexperientes. Os preceitos do Senhor são justos, e dão alegria ao coração. Os mandamentos do Senhor são límpidos, e trazem luz aos olhos. O temor do Senhor é puro, e dura para sempre. As ordenanças do Senhor são verdadeiras, são todas elas justas. São mais desejáveis do que o ouro, do que muito ouro puro; são mais doces do que o mel, do que as gotas do favo. (Salmo 19.7-10)

Assim diz o Senhor: "Não se glorie o sábio em sua sabedoria nem o forte em sua força nem o rico em sua riqueza, mas quem se gloriar, glorie-se nisto: em compreender-me e conhecer-me, pois eu sou o Senhor, e ajo com lealdade, com justiça e com retidão sobre a terra, pois é dessas coisas que me agrado" (Jeremias 9.23-24)

Por outro lado, haviam pessoas puras e impuras, nações puras e nações impuras, Deus e os ídolos. O homem puro era sábio, saudável (especialmente sem lepra), forte, valente e seguia os mandamentos de Deus; o impuro era a antítese disso.

Quem anda direito teme o Senhor, mas quem segue caminhos enganosos o despreza. (Provérbios 14.2)

Assim diz o Soberano Senhor: Já bastam suas práticas repugnantes, ó nação de Israel! Além de todas as suas outras práticas repugnantes, vocês trouxeram estrangeiros incircuncisos no coração e na carne para dentro do meu santuário, profanando o meu templo enquanto me ofereciam comida, gordura e sangue, e assim vocês romperam a minha aliança. … [Os sacerdotes] Eles ensinarão ao meu povo a diferença entre o santo e o comum e lhe mostrarão como fazer distinção entre o puro e o impuro. (Ezequiel 44.6-23).

O próprio profeta Isaías se declara (ao Senhor) um homem impuro, de impuros lábios. É preciso notar, portanto, que mesmo o homem puro (que teme ao Senhor) era impuro perante Deus, e “puro” ou “impuro” tratavam-se de classificações comparativas: alguém era puro EM RELAÇÃO A OUTRO.

As invasões gregas e romanas certamente desorganizaram a filosofia hebraica, trazendo a necessidade de convivência com povos estrangeiros EM SUA TERRA SANTA. Para preservar o povo dos costumes estrangeiros e ao mesmo tempo não afrontar os estrangeiros, tudo mudou. Cabia aos sacerdotes definir o que era puro e impuro, mas estes estavam sob o poder purificador do Estado. Na implantação do governo romano, um certo Judas Macabeu liderou uma rebelião contra os sacerdotes gregos no Templo:

[Judas Macabeu] Escolheu sacerdotes sem mancha e zelosos pela lei, os quais purificaram o templo, transportando para um lugar impuro as pedras contaminadas. Consultaram-se entre si, o que se deveria fazer do altar dos holocaustos, que havia sido profanado, e tomaram a excelente resolução de demoli-lo, para que não recaísse sobre eles o opróbrio vindo da mancha dos gentios. Destruíram-no, portanto, e transportaram suas pedras a um lugar conveniente sobre a montanha do templo, aguardando a decisão de algum profeta a esse respeito. Tomaram pedras intactas, segundo a lei, e construíram um novo altar, semelhante ao primeiro. (1ª Macabeus 4.42-47)

A re-organização do Estado judeu após a chegada dos gregos e romanos deixou do antigo império somente a classe dos sacerdotes Saduceus e Fariseus. Purificados pela tutela estatal, os sacerdotes mais e mais SE DENOMINARAM puros. E tal pureza era sobretudo dependente deles, a ponto de que Jesus, ao entrar no Templo (onde havia sim a porta dos pagãos), se deparou irritado com um intenso comércio ali. Os valores sagrados, veja-se bem, agora apostavam na economia, no lucro e na aliança política com os governantes romanos. Jesus mesmo foi declarado impuro (e merecedor da morte, além de cuspido e estapeado) pelos sacerdotes do Templo porque se dizia rei dos judeus, profanando a autoridade ... de César. Na sua definição herege (pois contrariava a do sagrado Sinédrio) do que era puro ou impuro, Ele dizia:

Será que vocês também não conseguem entender? Não percebem que nada que entre no homem pode torná-lo ‘impuro’? Porque não entra em seu coração, mas em seu estômago, sendo depois eliminado". Ao dizer isto, Jesus declarou "puros" todos os alimentos. E continuou: "O que sai do homem é que o torna ‘impuro’. Pois do interior do coração dos homens vêm os maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os roubos, os homicídios, os adultérios, as cobiças, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a calúnia, a arrogância e a insensatez. Todos esses males vêm de dentro e tornam o homem ‘impuro’. (Marcos 7.18-23)

De forma sutil, Jesus colocava um ponto temporal precioso na definição de pureza, que desbancava os religiosos. Ninguém seria puro porque cumpriu a lei (no passado) ou foi aprovado por um poder estatal, mas porque pratica amor aqui e agora. Para mostrar na prática onde isso levava, Ele não se importou de comer com publicanos, leprosos, etc. Na verdade, os convidava a segui-Lo como fazia a pescadores e fariseus que encontrava. Jesus oferecia o Reino de Deus aos pobres e infelizes, excluídos da política e da santa categoria dos sacerdotes. Você pecou? Não peques mais, e siga-me. Talvez a falta de preocupação de Jesus em definir o puro e o impuro esteja na separação inata de passado e presente. Afinal, ninguém guardaria vinho novo em um odre velho...

Quando Paulo escreve sobre os frutos do espírito e os frutos da carne, ele retoma somente em nome a noção platônica de perfeito e imperfeito. Paulo era grego e chamava a carne de impura, mas de forma alguma ligava essa imperfeição à limitação dos sentidos ou à mortalidade humana. Entre os frutos da carne que ele lista (todos defeitos a se considerar), todos são - como Jesus ensinava - comportamentos.

O adultério (literalmente ad alterum torum, na cama de outro) era quebrar uma aliança sagrada, mostrar uma imagem (pura) que não corresponde à verdade. Em diversas vezes os profetas também já haviam repreendido o povo por “adulterarem” ou “se prostituírem” com os ídolos, bosques, paus e pedras que consideravam deuses. A fornicação ou imoralidade sexual vinha de fornicis, ou fornix, o arco da porta de casa ao qual as mulheres estavam confinadas e sob a qual as prostitutas romanas se exibiam. “Fujam da imoralidade sexual”, dizia ele, "este é um pecado contra o seu próprio corpo que é santuário do Espírito Santo” (1 Coríntios 6.18-20). A lascívia ou libertinagem era a irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos, era “se deixar descumprir” as leis, especialmente quanto a amar a Deus e ao próximo. As falhas no amar a Deus são nomeadas feitiçarias (conceder a si mesmo ou alguém os conhecimentos [sobre a relação de causa e conseqüência] e poderes [para alterar a relação de causa e conseqüência] que somente Deus possui) e idolatria (amar como deus uma criatura), enquanto as falhas em amar ao próximo são chamadas de inimizades, porfias, iras, ódios, dissenções, desavenças, egoísmo, etc.

Jesus havia já colocado um sentido mais profundo (ou seja, não literal) no entendimento da lei de Moisés: 

Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não matarás’, e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: ‘Racá’ [inútil], será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco! ’, corre o risco de ir para o fogo do inferno. (Mateus 5.21-22)

Paulo estende esse raciocínio sutilmente às bebedices e glutonarias, que colocavam o prazer como propósito e fim do que se fazia, em detrimento do culto a Deus. Não que beber [vinho] e comer fossem proibidos, pois até Jesus se deleita dessas coisas, mas Paulo insiste em explicitar que não há distinção entre “fazer” e “fazer para Deus”.

Aquele que come de tudo não deve desprezar o que não come, e aquele que não come de tudo não deve condenar aquele que come, pois Deus o aceitou. Quem é você para julgar o servo alheio? … Há quem considere um dia mais sagrado que outro; há quem considere iguais todos os dias. … Aquele que considera um dia como especial, para o Senhor assim o faz. Aquele que come carne, come para o Senhor, pois dá graças a Deus; e aquele que se abstém, para o Senhor se abstém, e dá graças a Deus. … Se vivemos, vivemos para o Senhor; e, se morremos, morremos para o Senhor. Assim, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor. (Romanos 14.3-8)

Mas Paulo era grego e não estava imune ao pensamento de Platão: ao comparar o perfeito e o imperfeito, Paulo insiste que a carne (e só agora ela volta a ser mencionada) impede o homem de conhecer a Deus. Não que ela seja maléfica, mas é imperfeita. Sair da caverna de Platão e abrir os olhos, para ele, correspondia a receber a iluminação do Espírito Santo (semelhante, de certa forma, à Sofia ou Sabedoria grega):

Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. (1ª Coríntios 13.9-12)

Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor. (2ª Coríntios 3:18)

Jesus e Paulo certamente conheceram aqueles que se impunham jejuns e sofrimentos para purificarem-se, para optarem ao espírito e não à carne (que Paulo teria esquecido talvez, se não fosse um certo “espinho” ou mostra de imperfeição do qual ele se envergonhava). Em alguns lugares, a privação dos sentidos era até o caminho para Deus, fazendo Platão se remexer embaixo da terra. Mas o Cristianismo chegou à Europa e Oriente Médio curiosamente levando menos a mensagem de Jesus sobre o ser perfeito pelo amor demostrado ou a mensagem de Paulo sobre ser inteiramente de Deus, e mais a vida separada e abstêmia de João Batista ou as discussões metafísicas a que Paulo tanto tendia. Além, claro, do ferrenho poder político-religioso de uma casta separada e perfeita como eram os Fariseus e Saduceus. Mas isso é assunto para outro papo.

Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a convocação das assembléias; não posso suportar iniqüidade, nem mesmo a reunião solene. As vossas luas novas, e as vossas solenidades, a minha alma as odeia; já me são pesadas; já estou cansado de as sofrer. Por isso, quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos; e ainda que multipliqueis as vossas orações, não as ouvirei, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. 

Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal. Aprendei a fazer bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa das viúvas. Vinde então, e ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a branca lã. (Isaías 1.13-18)

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PÕE A CULPA NELES

J. Manimtim, What Does Plato Have to Do with Christianity and the Concept of Soul? Part 1
J. Manimtim, What Does Plato Have to Do with Christianity and the Concept of Soul? Part 2

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