segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Cultivando um vício


Mais uma vez apelando ao antigo Imitação de Cristo, achei que seria útil discutir um pequeno trecho desse livro à luz da Bíblia.

Para quem perdeu postagens anteriores, o Imitação de Cristo é um livro formado por 4 manuscrito feitos provavelmente entre 1220-1240 por João Gersen, abade do mosteiro de S. Estevão, em Vercelli (Itália). Os manuscritos originais foram depois organizados por Tomás de Kempis no séc. 15. Ele foi usado em larga escala para o ensino religioso em toda Europa, como uma espécie de “código” dos mosteiros, de onde as cidades se refizeram após o esfacelamento de Roma, e de onde ocorreu a cristianização da Europa. Pode-se dizer que boa parte do que conhecemos por Cristianismo está associado a esse livro.

cap IX, parágrafo 4
“Se cada ano extirpássemos um só vício em breve seríamos perfeitos. Mas agora, pelo contrário, muitas vezes experimentamos que éramos melhores, e nossa vida mais pura, no princípio da nossa conversão que depois de muitos anos de profissão. O nosso fervor e aproveitamento deveriam crescer, cada dia; mas, agora, considera-se grande coisa poder alguém conservar parte do primitivo fervor. Se no princípio fizéramos algum esforço, tudo poderíamos, em seguida, fazer com facilidade e gosto.”

Poderíamos discutir a questão do “primeiro amor”de que João fala em Apocalipse 2. No entanto, eu gostaria de abordar algo mais prático, que é justamente o que o início do parágrafo aborda: seria possível evitarmos os vícios, ou hábitos que nos afastam de Deus. No entanto, isso é coisa a que raramente se dá atenção e mais raro ainda se aborda de forma sistemática, apesar da famosa pregação “Sede santos, porque eu sou santo” (1ª Pedro 1.16). De fato, Pedro ainda repete a instrução dada a Moisés muito antes: “Portanto santificai-vos, e sede santos, pois eu sou o Senhor vosso Deus” (Levítico 20.7). Nos tendo feito a sua imagem e semelhança, Deus parece querer continuar a Se ver em nós!

Vício (do latim "vitium", que significa "falha" ou "defeito"). Contrário de virtude. É um hábito repetitivo que degenera ou causa algum prejuízo ao viciado e aos que com ele convivem.

Jesus também abordou a necessidade de um “comportamento correto” de sua forma terrivelmente intimista e prática:

Eu falo do que vi junto de meu Pai, e vós [Fariseus] fazeis o que também vistes junto de vosso pai. Responderam, e disseram-lhe: Nosso pai é Abraão. Jesus disse-lhes: Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão. Mas agora procurais matar-me, a mim, homem que vos tem dito a verdade que de Deus tem ouvido; Abraão não fez isto. Vós fazeis as obras de vosso pai.
...
Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira. Porque vos digo a verdade, não me credes. (João 8.38-45)

Na prática, somos tentados a acreditar que as regras sociais de “bom comportamento” são aquelas a que a Bíblia se refere: usar roupas longas e de cores sóbrias, não beber, não ouvir rock, não fazer tatuagem, não furar fila, não falar palavrão, ir à igreja, etc. O que proponho aqui é vasculhar a Bíblia atrás do que realmente é posto como degenerador do ser humano. Eis que reuni alguns, para que pensemos em fazer como recomenda a Imitação de Cristo. Ou seja, combatê-los sistematicamente em nós mesmos, começando pelos que cada um tiver em maior conta.

A variedade de nomes e palavras aqui reflete as variedades de tradução para o português. Organizei os vícios em 6 grupos de acordo com uma similaridade que percebi examinando os textos onde são citados, e que explicarei abaixo.

1. Falta de amor a Deus; idolatria; feitiçaria; imoralidade sexual; fornicação; orgias; falta de fé

O amor a Deus é o 1º Mandamento da Lei ditada a Moisés, e também o 1º dos Mandamentos proferidos por Jesus. Ao procurar na Bíblia um significado exato para o que seria “não amar a Deus”, o que encontramos é justamente a substituição do culto a Jeová/Javé por outros deuses como Apis (o boi), Baal, Asherá, Qemosh/Camos, Moloque, Astarte/Astarote, etc, aos quais os israelitas em algum momento creditaram a fertilidade da terra, sua liberdade ou a vitória sobre os povos vizinhos.

Os deuses rivais eram entidades pagãs, deuses ou forças “da natureza”. Quando os israelitas foram absorvidos por potências como a Babilônia ou Roma, eles também encontraram imperadores se nomeando como deuses e exigindo culto a sua pessoa, estátuas suas ou mesmo tronos. Os profetas se opuseram diretamente a outro culto que não o de Javé, mas repetidas vezes o povo foi punido por se desviar e seguir deuses pagãos ou os imperadores.

O culto dos deuses pagãos parecia estar sempre ligado à fertilidade da terra… que era celebrada ou evocada através de atos sexuais e prostituição nos templos. Tratavam-se de sexo ritual entre homem-mulher e entre homens, em duplas ou coletivamente. A cidade de Sodoma, por exemplo, parecia ser adepta dos cultos orgíacos. Dessa forma, inevitavelmente ficaram associados o sexo (público) ao culto pagão, a ponto de o sexo ser considerado pecado! Curiosamente não haveria outra forma de produzir cada ser humano sobre a Terra.

Desde o século 18, os deuses pagãos foram substituídos terrivelmente pelo individualismo e pelo não-culto. Assim, hoje somos muito mais tentados a creditar nossos sustento, nossas virtudes e nossa liberdade ao dinheiro (Mamon) ou ao próprio merecimento, ao governo (no caso dos países desenvolvidos), ao status social (para quem o tem), a algum conhecido influente, etc. São deuses que não requerem agradecimento algum, e de fato nos abençoam tanto quanto Baal aos seus profetas, quando foram desafiados por Elias! (1ª Reis 18)

2. Falta de amor ao próximo; inimizades; partidos; furtos; ódios; iras; brigas; discórdia; traçar planos perversos; amargura

O “amor ao próximo” foi o ponto crítico da pregação de Jesus, sem o qual - ele explicava repetidamente - a Lei é inútil. Mas não se tratou de uma fala original: Elifaz de Temã, no livro de Jó, já acusava aqueles que não ajudavam aos mais fracos. Vários ítens da lei, como “não matar”, “não roubar”, “não cobiçar a mulher ou o gado alheios”, etc também recaem inevitavelmente nesse ponto em que a nossa sociedade competitiva nos ensina a fazer o contrário do que Deus manda, justamente ajudar aquele para quem podemos perder algo.

Afinal, “amar ao próximo” sempre vai nos condenar a precisar do Pai - e não de nós mesmos ou do apoio social - para vivermos. Quem em sã consciência faria algo assim? Abraão e o rei de Salém* instituíram o dízimo como uma ação “socialista” da Igreja. Salomão já ensinava: “Quem dá aos pobres não passará necessidade, mas quem fecha os olhos para não vê-los sofrerá muitas maldições” (Provérbios 28.27). Malaquias bem nos deixou “Tragam o dízimo todo ao depósito do templo, para que haja alimento em minha casa. Ponham-me à prova", diz o Senhor dos Exércitos” (Malaquias 3.10). João fez isso, Jesus também e ainda aconselhou seus seguidores assim: “O Rei responderá [no Último Dia]: ‘Digo-lhes a verdade: o que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram’” (Mateus 25.40). Estranha, Judasmente ou capitalisticamente, mesmo a Igreja e nós temos nos esquecido de “dar aos pobres”, mas não de arrecadar a prosperidade oferecida por Deus.

3. Impureza; desonestidade; mentiras; calúnias; injustiças; imitar “o mundo”

O que é ser PURO? Biblicamente, essa palavra é usada muitas vezes, com poucas explicações. Aparentemente, a “pureza” é atribuída aquilo que se pode ver através e àquilo que não muda, que é constante. Assim, o indivíduo puro é aquele que nada esconde, e que também é perfeitamente justo ou igualitário. Em outras palavras, estamos falando de um sujeito incapaz de privilegiar a si mesmo ou até um conhecido em desfavor de qualquer outra pessoa.

Estou limpo e sem pecado; estou puro e sem culpa. (Jó 33.9)

Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo? Aquele que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à vaidade, nem jura enganosamente. (Salmos 24.3-4)

Jesus atribui o “domínio desse mundo” a um Príncipe sobretudo mentiroso e injusto (João 14.30), e Paulo aprofunda isso afirmando que a injustiça faz parte do que a nossa carne deseja (Gálatas 5). Seria, portanto, natural às pessoas deixar a pureza e acostumarem-se à injustiça, da qual se tornam praticantes e colaboradoras. Jesus chega a nomear essas pessoas de “filhos do Diabo” (João 8.44).

4. Libertinagem; palavras torpes; gritaria; insujeição; obscenidades

Libertino: aquele que é desregrado em sua conduta; devasso, dissoluto. Pessoa livre da disciplina da fé religiosa; livre-pensador.

Eis aqui o abandono das leis, da moral, de toda regra que confronte a vontade individual e tente fazer as pessoas agirem juntas para algum propósito. É interessante notar que Moisés esmerou-se em produzir um código de leis escritas e constantes, quando outros povos se pautavam na vontade dos reis. Josias resgatou essa Lei, que se perdera na invasão de Jerusalém pelos assírios. Esdras, depois, fez da Lei o símbolo da continuidade de Judá após o cativeiro na Babilônia. Jesus veio quando a Lei estava sendo praticada de forma fria, sem amor a Deus e como um fim em si mesma, fonte de lucro e status ao invés de um auxílio para a vida dos homens.

E se a Lei estabelecia uma forma para os homens agirem entre si, delimitando os limites de cada um, Jesus propunha mais: “Quem quiser ser o maior, seja o menor entre todos” (Lucas 22.26). Não bastava que um deixasse de prejudicar o seu próximo. Era necessário servi-lo, devotar-se a ajudá-lo! Ao invés de uma Lei que exercesse coerção nos homens para moldar seu comportamento, Jesus propunha que a Lei fosse desnecessária porque seu objetivo seria o mesmo no coração das pessoas.

Por outro lado, há algo de terrível na liberdade e que motiva pessoas a uma vida religiosa legalista. Ser livre significa ser responsável pelos seus atos. Estando por detrás de uma doutrina ou lei, os Fariseus mesmo cobiçavam a fortuna, o status e [por isso] eram tidos como “santos”. Quando Jesus disse que a Lei tinha um propósito e não superava as necessidades dos homens, aqueles “santos” que obedeciam a “não matarás” organizaram como Ele seria morto e procuraram alguém [impuro] para fazer isso. E o dinheiro envolvido também não deveria ser ofertado no Templo, para não contaminar a sua pureza. Quem puder ver a superficialidade aí, sinta-se abençoado.

5. Ambição; inveja; ciúme; indignação; olhos altivos

Ambição: motivação dos comportamentos por um desejo forte de recompensa ou superioridade em relação aos demais.

Inveja: ação coercitiva ou agressiva dirigida a um concorrente e motivada por sentimento de posse.

Ciúme: ação coercitiva ou agressiva dirigida a um objeto ou pessoa disputados e motivada por sentimento de posse.

A definição exata dos significados de ambição, inveja e ciúme é necessária aqui, porque não existem comportamentos “de ambição”, “de inveja” ou “de ciúme”. Todos são sentimentos presumidos pela própria pessoa ou por outros que sabem mais do que está sendo mostrado em um discussão irritada, por exemplo. Além disso, embora o Ciúme seja condenado, é traduzido em algumas versões que “o Espírito que em nós habita tem ciúmes” (Tiago 4.5), ou que Deus manifestou ciúmes pelo Templo onde Ezequiel viu colocadas imagens de outros deuses, na porta norte do pátio (Ezequiel 8.3).

Mas que espécie de Deus nos recomenda sermos como Ele e nos proíbe o ciúme, quando Ele mesmo o manifesta? Exatamente um Deus QUE NOS POSSUI, e jamais entregaria a outro.

Lembrem-se dos dias do passado; considerem as gerações há muito passadas. Perguntem aos seus pais, e estes lhes contarão... Quando o Altíssimo deu às nações a sua herança, quando dividiu toda a humanidade... Numa terra deserta ele os encontrou, numa região árida e de ventos uivantes. Ele o protegeu [a Seu povo] e dele cuidou... O Senhor sozinho o levou; nenhum deus estrangeiro o ajudou. Mas eles o deixaram com ciúmes por causa dos deuses estrangeiros, e o provocaram com os seus ídolos abomináveis. Sacrificaram a demônios que não são Deus, a deuses que não conheceram, a deuses que surgiram recentemente, a deuses que os seus antepassados não adoraram. (Deuteronômio 32)

Tão ruim quanto é se as pessoas tomam como deuses a si próprios e dizem aos outros “Eu fiz isso”, ou “Eu sou responsável por aquilo”. Comportalmentalmente falando, isso aparece quando alguém recusa ajudas ou reprimendas porque “não estão à sua altura”. Tal orgulho é citado entre as coisas que Deus mais odeia.

6. Conversas tolas; bebedeiras; gracejos imorais; insensatez; falta de exortação; falta de ensino

Sem pestanejar, o Livro de Provérbios atribui muitos adjetivos a isso, mas o principal é INSENSATO, ou TOLO, aquele que não pensa, e cujo destino será a própria destruição. Esse personagem caricato não apenas se afasta dos bons conselhos, mas tenta arrastar outros para sua falta de sabedoria ou loucura. Ele não personifica o mal, nem a obra da maldade, apenas se afasta irresponsavelmente dos ensinos que o Senhor proveu. E jamais ensinará o que é certo aos demais, antes ensinará como bom o que é pior.

Como que atribuindo uma culpa por simplesmente desprezar o ensino do Senhor, esse talvez seja o vício mais gravemente ligado à natureza humana. Para o repetirmos e empoderarmos, basta não nos instruirmos no que Deus ensinou ao longo de 10 mil anos e mais de 300 gerações de sábios, profetas e santos. Basta ignorar, deixar de fazer, rir e esnobar aos outros a própria ignorância como se fosse um tesouro a se guardar. É só não fazer nada...

Certamente muitas pessoas com dificuldades para ser felizes também vão enxergar aí a desculpa perfeita para si mesmos: ao invés de fazer o bem a mim ou qualquer outro, vou me afundar no biblicalismo e recitar para o vento o que há na Bíblia. Jesus fez isso mesmo. Ah, não fez?! Como no começo da frase, a quem isso vai ajudar? Qual faminto será alimentado, qual doente será curado, e qual injustiçado terá ajuda nisso? Não é a Bíblia feita de vidas ao invés de enunciados? Como Ele mesmo disse, “também está escrito...”

O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? (Isaías 58.6-7)

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Certamente que cada um de nós pode enxergar nessa lista de desventuras algumas que lhe cabem. Não somos perfeitos, e Paulo mesmo argumenta que a carne nos conduz ao mau. Mas não é sem valor que cada um invista tempo e esforço em fazer como recomenda o pequeno parágrafo lá no início. De pouco em pouco, podemos nos tornar mais próximos ao que agrada Deus.

*Salém era uma das cidades situadas no terreno fértil às margens do Mar Morto. Numa histórica batalha, os reis de Sinar, Elasar, Elão e Goim se uniram para dominar as outras cidades. Sabendo que seu irmão Ló estava prisioneiro (pois Sodoma era uma das cidades atacadas), Abraão reuniu outros reis para fazer oposição aos primeiros. Entre eles estava o rei de Salém, Melquizedeque, chamado honrosamente de "sacerdote do Deus Altíssimo". Davi freqüentou um tabernáculo em Salém, o que sugere que se tratava de um lugar religioso.

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